Um dos traços comuns à história das grandes potências é a valorização do conhecimento em todas as suas formas e manifestações. Desde os impérios da antiguidade, conquistar e conservar o poder passa, obrigatoriamente, pelo desenvolvimento de capacidades técnicas e pelo uso estratégico que se faz destas vantagens adquiridas. As cortes sempre foram a morada das mentes mais inventivas e dos talentos artísticos superiores. Apesar dos ensinamentos da história, o Brasil decidiu reinventar a roda e flertar com o caos.

O recém-queimado Museu Nacional dá uma ideia perfeita do atraso civilizatório das elites brasileiras e de sua classe política, desde a formação do país. Nascido Museu Real em 1818 pelas mãos de D. João VI, viveu seus anos de glória durante o segundo reinado (1840-1889). Um dos mais eruditos governantes do Brasil, Pedro II se notabilizou por ser um amante das ciências e das artes, contribuindo para o enriquecimento do acervo do museu. Entretanto, o golpe militar que instaurou a República do Brasil e baniu os Bragança parece ter degredado também o pouco do gosto e apreço pelo conhecimento presentes até então em solo brasileiro.

O recém-queimado Museu Nacional dá uma ideia perfeita do atraso civilizatório das elites brasileiras e de sua classe política, desde a formação do país.

O périplo do Museu Nacional rumo ao seu fim coincide com o início da experiência republicana brasileira, algo próximo à tragédia. Enquanto o povo assistia bestializado, na melhor caracterização do historiador José Murilo de Carvalho, ao nascimento da nova ordem política no final do século XIX, o museu tinha parte de seu mobiliário leiloado. Valia tudo para romper com as raízes do Brasil. Era urgente substituir a influência da “velha e carcomida” Europa pela confraternização com a jovem e grande república anglo-saxônica. Negar a fundação do Brasil e a formação do seu povo abriu caminho para unificar os poderes econômico e político numa elite agroexportadora. Contudo, os novos mandatários pouco fizeram para disseminar o conhecimento, alicerce dos dois outros poderes. Assim, surgiu um grande país de pequenos cidadãos.

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O paraíso distópico

O Museu Nacional, assim como toda cultura superior e ciência no Brasil, foram condenados à própria sorte. Esquecidos como um objeto sem valor no fundo de uma gaveta, resistiram heroicamente às provações do tempo até que o inevitável um dia aconteceu. Segundo a BBC Brasil, em 2017, mais turistas brasileiros visitaram o Louvre em França (289 mil) que o Museu Nacional no Rio de Janeiro (192 mil). O último presidente a dar o ar de sua graça na antiga residência imperial foi Juscelino Kubistchek em 1958. De reconhecida importância mundial, recebeu as visitas ilustres de Albert Einstein, Santos Dumont e Madame Curie. O museu não ardeu por falta de dinheiro. O museu virou cinza por cálculo político.

O Museu Nacional, assim como toda cultura superior e ciência no Brasil, foram condenados à própria sorte. O museu não ardeu por falta de dinheiro. O museu virou cinza por cálculo político.

A deterioração à qual foi submetido nos últimos anos resulta da gestão ideológico-partidária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), responsável pela administração do Museu Nacional. Enquanto as chamas engoliam impiedosamente suas instalações e seu acervo de cerca de 20 milhões de itens, os donos do incêndio acusavam Michel Temer pelo desastre, como criança a esconder a mão que atirou a pedra. Fiel depositário da cadeira presidencial e cujo governo respira com ajuda de aparelhos, declarou tratar-se de uma “perda incalculável para o Brasil”. Temer, incalculável é o apetite dos piromaníacos da UFRJ por dinheiro público.

Dirigida por militantes do Partido Socialismo e Liberdade (PSol), legenda dissidente da ala radical do PT de Lula da Silva, a UFRJ foi premiada com um aumento de recursos do governo Federal entre 2014 e 2017, saltando de R$ 2,6 mil milhões para R$ 3,1 mil milhões. Entretanto, o gasto com pagamento do funcionalismo devorou a totalidade do valor acrescido ao orçamento da universidade. Ao museu, cabiam R$ 500 mil por ano, os quais não eram repassados integralmente. O Museu Nacional não interessava aos reitores da UFRJ. A prioridade consistia em acomodar os camaradas nas tetas fartas do Estado e aparelhar a instituição para causa revolucionária. A universidade pública converteu-se na principal trincheira de luta ideológica da esquerda brasileira.

A bolha do mal

O gosto do Brasil pela interrupção abrupta da ordem política, se não nasceu junto com a República, aproveitou-se desta para amalgamar o pior da tradição do iluminismo francês, o qual influenciou os movimentos independentistas nas colônias ibero-americanas. Prestes a completar 129 anos, a instável República brasileira luta para se livrar do vício de origem. Foi precisamente numa destas quebras violentas da institucionalidade que a universidade brasileira foi capturada e convertida em aparelho da militância revolucionária. Se na condução da ciência a universidade brasileira mostra-se claudicante, haja vista a dificuldade de figurar no topo do rankingdas melhores instituições da América Latina, na política parece mais assertiva.

A universidade assumiu a missão de derrubada dos militares, e suas salas de aula passaram a fornecer guerrilheiros para a luta armada. O objetivo declarado: substituir a ditadura de direita pela do proletário.

O regime de exceção implantado pelos militares em 1964, dentre os muitos erros cometidos, também permitiu o ensino superior ser tutelado pela esquerda. Neste momento, teve início o domínio da abordagem marxista na área de humanas. Que se diga a verdade: uma repetição do que acontecia nos países democráticos. Entretanto, por razões óbvias, no Brasil a apropriação do fenômeno mundial da contracultura reverberou em diversas formas de contestação. A universidade assumiu a missão de derrubada dos militares, e suas salas de aula passaram a fornecer guerrilheiros para a luta armada. O objetivo declarado: substituir a ditadura de direita pela do proletário.

Derrotada na luta contra os militares e obrigada a aceitar o fato inexorável de que o capitalismo não morreu, a esquerda transformou a universidade num búnquer de resistência. Numa ode ao atraso, os ensinamentos do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci foram seguidos à risca. Responsável por identificar a inviabilidade de se fazer revolução pela força das armas, Gramsci ordenou aos seguidores da seita radical: “Não tomem quartéis, tomem escolas e universidades.Não ataquem blindados, ataquem ideias”. Assim, cada centímetro do ambiente acadêmico passou à condição de espólio da militância. Regidos pela cartilha do revolucionário, professores passaram a controlar o ensino enquanto estudantes dominavam as agremiações estudantis.

Passadas mais de três décadas da restauração democrática, em 1985, pouco ou quase nada mudou em relação ao atavismo de esquerda da universidade brasileira. Quando muito, trocaram-se as armas pelo voto. O complexo persecutório da clandestinidade está presente na alma de seus militantes. O inimigo a ser batido, embora a preferência seja pelo abatimento, continua a ser os Estados Unidos, “propagadores do capitalismo selvagem que escraviza os povos”. Há sempre uma conspiração para fazer falhar o nobre projeto do socialismo mundial.

Na estratégia política da esquerda brasileira, controlar o ambiente acadêmico significa possuir o monopólio da produção de narrativas para explicar o passado, justificar o presente e planear o futuro. Nos cursos de ciências humanas das universidades públicas, mas não somente, a vocação acadêmica deve vir acompanhada da disposição de repetir o velho e ultrapassado mantra da luta de classes a fim de perpetuar estruturas de poder e de influência ideológica. Feudos são propositadamente criados para alavancar os estudantes dispostos a reiterar o mundo jurássico do militante dublê de professor.

Aos não-alinhados resta o ostracismo medido pela falta de um orientador. Uma vez intelectual orgânico, todo um celeiro de oportunidades se abre. Não faltam verbas para as mais estapafúrdias investigações, desde que comprometidas com a causa do partido que controla a universidade. É chegada a hora de se recuperar das privações financeiras nos anos fora da bolha. (Qualquer semelhança com a velha nomenclatura soviética não é mera coincidência). Projetos são aprovados em escala industrial como itens de qualidade inferior, fabricados para preencher espaços vazios das prateleiras empoeiradas das bibliotecas.

A dificuldade de se submeter o objeto de pesquisa das humanidades ao teste de refutação impulsiona a máquina de pseudociência. Com usual desfaçatez, qualquer tese pode ser defendida com base nos relativismos moral e cultural.

O método científico é um detalhe menor. A dificuldade de se submeter o objeto de pesquisa das humanidades ao teste de refutação impulsiona a máquina de pseudociência. Com usual desfaçatez, qualquer tese pode ser defendida com base nos relativismos moral e cultural. Tudo laboriosamente feito em sintonia com o marxismo (o de Marx, claro, já que existe um para cada tipo de paladar autoritário), cujo pretenso estatuto científico foi desmoralizado na vasta obra de Karl Popper. Em nome da “justiça social”, a universidade pública tem prestado um desserviço de proporções gigantescas ao ensino do Brasil.

É nela que são formados, digo doutrinados, a maioria dos mestres e doutores do país. Quando não permanecem de alguma forma ligados às universidades do governo ao abrigo dos infindáveis privilégios (para eles direitos), tornam-se professores das instituições particulares. Com toda esta força de mobilização e capilaridade, não por acaso, foi precisamente no meio acadêmico que surgiu o maior partido político do Brasil e um dos mais influentes da América Latina: o PT de Lula da Silva. Sem contar com a maioria dos intelectuais fundadores da legenda, desiludidos com a corrupção endêmica dos seus governos, o PT e sua militância fazem parte do jogo que vai definir o futuro da democracia, podendo finalmente conduzir o país para estabilidade republicana. Mas o inverso também pode acontecer.

Democracia 2.0

O Brasil já vive um dos mais longos períodos de sua história republicana sem interrupção da ordem política. São mais de três décadas em que o apetite de golpistas contumazes é contido pela força das instituições. Entretanto, numa das mais importantes disputas eleitorais dos últimos tempos, se não a mais, a polarização que se estabeleceu pode conduzir o país a um passado que parecia sepultado. O duelo entre os dois extremos do espectro político no mínimo exige dos defensores da causa democrática cautela redobrada. Numa eleição caracteriza pela imprevisibilidade, por isso mesmo um risco à reputação de analistas, tudo indica que direita e esquerda farão um duelo épico pelo voto do eleitor numa provável segunda volta.

Independente da necessidade ou não de uma nova votação, a corrida presidencial assumiu de vez o caráter plebiscitário para o qual este autor havia alertado em artigo publicado por este Observador em 12 de agosto, tão logo definiram-se as candidaturas. De um lado o PT, com Lula da Silva a manter, de dentro do cárcere, total controle sob a campanha do seu candidato Fernando Haddad, que tem como vice a comunista do PCdoB Manuela D’Ávila, até então uma ilustre desconhecida na cena política nacional.

Em meio a tantas incertezas do jogo eleitoral brasileiro, um fato é certo: com a vitória ou derrota do petismo, o Brasil abraçará o populismo.

De outro, Jair Bolsonaro, deputado de 27 anos de experiência parlamentar e capitão reformado do Exército, compõe chapa com o general Hamilton Mourão, ambos de partidos pequenos. A candidatura Bolsonaro foi a única a denunciar as falcatruas do PT e a contestar suas agendas particulares: racismo, homossexualidade, feminismo, drogas, entre outras. Em suma, trata-se de um duelo entre petismo e antipetismo. Retrospetivamente, a disputa pode ser interpretada como uma revanche entre as forças que se enfrentaram durante a ditadura militar, só que agora elas trocaram a violência das armas pela soberania do voto.

Em meio a tantas incertezas do jogo eleitoral brasileiro, um fato é certo: com a vitória ou derrota do petismo, o Brasil abraçará o populismo. Se o petismo se sagrar vitorioso, Lula da Silva, “a alma mais honesta e perseguida do mundo” será indultada para assumir um cargo central na presidência. Como pai dos pobres, acenará aos mais carentes, enquanto governa para os ricos. Assim, Lula e seus sequazes perderão a última camada de pudor capaz de conter as mais vorazes ambições de seu partido marxista-leninista de governar acima das instituições.

Caso eleito, Bolsonaro precisará de muita habilidade para negociar as reformas de que o país necessita, num Congresso onde sobressai o fisiologismo. A julgar pelo histórico do candidato, acostumado a fazer política com o fígado, o choque será inevitável. A superação da crise passa pela pacificação da sociedade. Esta dificilmente virá com Bolsonaro. Na oposição, o partido de Lula da Silva colocará em prática sua especialidade, obstruir sistematicamente tudo, sem se importar com os interesses do país e a olhar tão somente para seu projeto de poder. Para refrescar a memória do leitor, o PT não assinou a Constituição de 1988 e foi contra o Plano Real de Henrique Cardoso, responsável pela estabilização da economia a partir de 1994.

Sim, o Brasil está numa encruzilhada. No deserto de liderança política, o candidato mais bem colocado nas sondagens está há duas semanas internado num hospital a se recuperar de um atendado. Na outra ponta, o chefe do principal partido latino-americano comanda o destino do seu grupo preso numa cela da Polícia Federal. A eleição vai passar, mas a fratura continuará exposta. Operar uma sociedade cada vez mais complexa exige muito dos políticos que a governa e dos seus indivíduos. Num país em que a média escolar da classe dirigente, assim como da elite empresarial, é de dez anos e a educação superior está subordinada a uma ideologia radical, vai faltar museus para serem queimados.

Jornalista e doutorando em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Pesquisa os desafios do multilateralismo liberal no presente contexto de transformação da ordem mundial.