Vivemos num mundo da pós-verdade. Raramente interessa aquilo que é, interessa aquilo que aparenta individualmente ser, a verdade e os factos tornaram-se extremamente pessoais e discutíveis, não dominados pela razão, mas pelas sensações e emoções.

A discussão política deixou de ser sobre ideologia, sobre divergências relativas a caminhos e projetos a seguir, e tornou-se sobre narrativas. Mais concretamente, sobre a criação, construção e aplicação de uma narrativa ou contra narrativa. A mentira é, por isso, uma das principais ferramentas na criação de narrativas, tornando-se essencialmente o problema das narrativas politicamente construídas. A narrativa nem sempre foi um perigo para a democracia, afinal, é necessário e natural existirem formas de narrar um acontecimento, de relatar e expor uma realidade. O problema é quando essa narrativa é construída sem bases materiais de verdade, de realidade, é basicamente como construir uma casa de cartas. E, muitas vezes, a cola que une essa “casa de cartas” é a mentira, a falsificação e distorção de factos e acontecimentos. Na transmissão da narrativa e na sua aceitação por um grupo grande de pessoas, apoiantes ou eleitores, as emoções e o aproveitamento do medo, dos desejos e ambições representa um papel muito importante.

“A propaganda moderna é um esforço consequente e persistente de criar ou formatar acontecimentos com o objetivo de influenciar as relações do público com uma empresa, uma ideia ou um grupo.” Escreve Edward L.Bernays, o pai do conceito de propaganda. Este conceito, que começou por ser usado no marketing comercial, na construção de uma narrativa ideal para vender um determinado produto, encontra-se atualmente enraizado na praxis política. Agora, o objetivo não é só vender um produto, neste caso um candidato, mas também vender uma ideia, mesmo que esta seja completamente desfasada da realidade e pouco sustentável factualmente e do ponto de vista racional. Os principais partidos e figuras políticas a fazer uso deste tipo de construção de realidades são, habitualmente, a direita radical e a extrema-direita, mas também partidos/movimentos tipicamente de esquerda. O partido republicano, liderado e tomado por Donald Trump, é uma fiel representação disso mesmo em 2024, assim como o rassemblement national de Marine Le Pen. Nos partidos de esquerda mais radical também se verifica algumas vezes o recurso à construção de narrativas com base em mentiras, como é o caso do Bündnis Sahra Wagenknecht – Vernunft und Gerechtigkeit, um partido-movimento alemão de esquerda radical e populista, que usa muitas vezes o recurso a propaganda pouco fiel à realidade e a mentiras extremamente incendiárias.

O grande perigo para a democracia, para além destes partidos e dos seus métodos, está na ansiedade e tensão dos partidos tidos como democratas, quer eles sejam tradicionais ou não, e nas suas consequências. A ansiedade e tensão pode resultar nessa necessidade de criar narrativas com pouca sustentação material, de usar a mentira como arma política de base e abandonar a ideologia e a divergência natural de opinião racional. Internamente nos grandes partidos vemos surgir alguns sinais desses tempos da realidade política, a criação de narrativas com o objetivo de criticar internamente o partido e as suas direções ou de atacar os partidos da oposição e as suas lideranças. Isto cria uma realidade paradoxa ao funcionamento de qualquer democracia, porque, na política, tal como na ciência, para discutir sobre um objeto é preciso termos uma definição mútua consensual sobre o que é um determinado objeto.

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Democracia é discordar racionalmente sobre como pintar, usar, expor ou proteger o tal objeto, mas para que seja possível que essa discussão traga resultados, é necessário que os intervenientes concordem, pelo menos, numa definição do objeto. As narrativas com base em mentiras distorcem e infetam completamente essa possibilidade, passam a existir várias definições dos factos, o que torna impossível uma discussão racional ponderada e saudável, torna as discussões emocionais, pessoais e radicalizadas.

A comunicação social representa um fator preponderante nesta construção de narrativas, sendo muitas vezes usada para apresentar esses mesmos factos distorcidos, acabando por ser o principal meio utilizado para manipular e influenciar a opinião pública. Felizmente, muitos jornalistas e meios de comunicação ainda conseguem equilibrar e esclarecer os acontecimentos, apresentando uma narrativa mais afastada e concreta dos acontecimentos em questão, trazendo uma definição mais lúcida dos factos. Muitas vezes, quem absorve estas narrativas não acredita propriamente nelas racionalmente, mas, acima de tudo, quer acreditar. Existe uma sensação e um sentimento interno de algo e recebe positivamente a mensagem de alguém, principalmente se for alguém com relevância social, que possui a razão, mesmo que isso não seja verdade.

“Falamos antes de pensar e mesmo que possamos depois perceber que estamos errados e que o que afirmamos é falso, queremos que pareça o contrário. O interesse pela verdade, que se pode presumir ter sido o único motivo quando declaramos a proposição, dá agora lugar aos interesses da vaidade, o que é verdadeiro deve parecer falso e o que é falso deve parecer verdadeiro.”  Escreveu Arthur Schopenhauer já há alguns anos. Infelizmente, o passar dos anos, a atualidade política e a própria sociedade, provaram que ele tinha razão.

É urgente definir o que é o objeto, o que é narrativa e o que são factos. Distinguir o que é divergência e o que é mesquinhez, é ajudar a política e a democracia a manterem-se lúcidas.