Quando eu era estudante de liceu em Coimbra, anos 80 do século passado, tinha alguns colegas de Miranda do Corvo e da Lousã. Iam todos os dias para as aulas de comboio, ou, melhor dizendo, numas automotoras que, apesar de antiquadas, cumpriam muito bem o seu papel. Essa linha férrea servia as populações entre Coimbra e a Lousã, que diariamente a usavam. Para se perceber a utilidade desta linha férrea basta referir que, em 2009, a CP transportou um milhão de passageiros.
Digo 2009 porque, em 2010, os carris foram literalmente arrancados para serem substituídos por um metro ligeiro de superfície. Até se criou uma empresa, a Metro Mondego, com Presidente Executivo, Conselho de Administração, Gabinete Jurídico, Assembleia Geral e essas coisas todas essenciais para um trabalho empenhado. Mas as obras pararam aí. Nunca mais fizeram nada. As pessoas ficaram entaladas com um ineficiente sistema de autocarros até hoje. As últimas notícias apontam para a solução que entrará em vigor em 2021, se não houver atrasos. A solução, que tem o pomposo nome de “sistema metrobus”, consiste em 43 autocarros. Porque me lembrei desta história? Para explicar que percebo o trauma que o Estado tem com as obras que começam e nunca mais se acabam, o que ajuda a perceber o medo que têm com a construção da Ala Pediátrica no Hospital de São João pela Associação Joãozinho.
Isto vem a propósito das notícias da semana passada sobre a forma miserável como as crianças, em especial crianças a necessitar de quimioterapia, são tratadas no Hospital de São João. Com as notícias, ficámos a saber que este escândalo já se desenrola há vários anos. Mais propriamente há 10 anos, como o metro do Mondego. Ficámos também a saber que há alguns anos, ainda no tempo do governo anterior, foi criada a Associação Joãozinho, presidida por Pedro Arroja, que se propunha construir, recorrendo ao mecenato, a obra e oferecê-la, uma vez concluída, ao Hospital de São João. Com esse objectivo foi assinado um protocolo entre três partes. A referida Associação, o Hospital e um Consórcio (formado por duas construtoras) para a construção da ala pediátrica.
A construção, conforme o planeado, avançou e depois parou. E parou em Março de 2016 porque o Hospital, já com novo Conselho de Administração que tomou posse em Fevereiro desse ano, não libertou o espaço necessário para continuar a obra. Basicamente, se entendi bem, exigia garantias absolutas de que era angariado o dinheiro suficiente para terminar a obra. Não queriam correr riscos de ficar com uma obra que não lhes pertencia empatada nos seus terrenos.
Quando soube desta história, não intervim imediatamente porque tudo me pareceu uma história mal contada. A que pretexto é que Pedro Arroja se envolvia na Associação para fazer uma obra de 25 milhões de euros que depois entregaria ao Estado? Assim, sem mais? Sem exigir nada em troca? Difícil de acreditar. As minhas suspeitas pareceram confirmar-se quando soube que Pedro Arroja tinha chegado a acordo com o Continente para abrir uma loja nos terrenos do Hospital. Pagando o Continente 300.000€ por ano durante 50 anos (o que terá um valor actual de 10 milhões de euros, mais coisa menos coisa).
Mas, na verdade, não confirmei nenhumas das minhas suspeitas. Muito pelo contrário. Tive acesso ao protocolo referido acima e lá é explícito que, no fim da obra, a mesma é entregue ao Hospital. O que recebem em troca? Quase nada: uma tabuleta à entrada com o nome dos mecenas que financiarem a obra. Adicionalmente, será criado um “Conselho de Mecenas” com funções, passo a citar, “meramente consultivas”, sendo ainda explícito que nem sequer fará parte da sua estrutura orgânica. Mais despojamento do que isto não é possível.
Apesar de tudo, compreende-se o argumento da actual Administração do Hospital. Dado que apenas foi angariado um milhão de euros em dinheiro vivo, há a possibilidade de a obra ficar a meio. E é fácil de imaginar o imbróglio jurídico: uma obra feita por privados em terrenos públicos por concluir. O que poderia o Estado fazer com ela? Ainda por cima, o Estado não pode entregar a obra às construtoras sem que seja feito um concurso público.
A resposta a esse imbróglio está no protocolo assinado: se a obra ficar parada durante 9 meses (seguidos ou interpolados) ou se se verificar um atraso no plano de trabalhos superior a 12 meses, o que estiver feito reverte na totalidade para o Hospital. Sem mais obrigações. O Hospital pode, inclusive, entregar o resto da obra a outras construtoras. Adicionalmente, o consórcio construtor prescinde do direito a qualquer indemnização. Tudo isto está explícito no protocolo assinado. Que mais garantias podem querer?
Confesso que quanto mais me informo, mais me parece absurda a posição da Administração. E, devo dizer, com honestidade, que, quando comecei a informar-me, o meu preconceito era contra Pedro Arroja. Mas uma coisa é o que pensamos sobre Pedro Arroja. Outra é o que está escrito. E, da forma como está escrito, se as obras parassem ao fim de 5 milhões de euros, então é como se a Associação doasse esses 5 milhões de euros ao Estado.
Mesmo assim, o Hospital quis garantias de que haveria dinheiro para a obra. É daí que veio a ideia de entregar ao Continente um espaço para abrir uma loja. Uma renda fixa de 300 mil euros anuais durante meio século, facilmente é convertida em 10 milhões de euros imediatamente. Pelos vistos, apesar de ter resultado de um acordo entre a Associação, o Hospital e o Continente, não há cabimento legal para uma solução destas (o que é esquisito, pois não é assim tão original), mas imagino que por concurso público talvez fosse possível chegar a valores similares.
Mas voltamos ao mesmo, com ou sem Continente, os interesses do Hospital estão salvaguardados. Pedro Arroja garante que tem angariados bem mais do que um milhão de euros (na forma de acordos de mecenato plurianuais) e que um terço da obra vai ser realizada com donativos em espécie (tintas, tijolos, ferro, etc.). Mas não é necessário acreditar na palavra dele: se a Administração tem assim tantas dúvidas de que a obra chegue ao fim e não quer ficar com ela empatada, o melhor que tem a fazer é deixá-la prosseguir, esperando que os fundos se esgotem. É que se isso acontecer, 9 a 12 meses depois, tomarão posse dela sem quaisquer obrigações adicionais e o Governo já disse que tinha dinheiro para a acabar. Repare-se que os trabalhos estão parados há dois anos. Se estivessem parados por responsabilidade da Associação então o que está feito já teria revertido a favor do Estado.
Talvez por esta situação ser tão difícil de compreender, nos últimos dias vieram a lume notícias que dão conta de que, afinal, o Hospital de São João não precisará de instalações tão faustosas para as crianças. Ouvimos o bastonário da Ordem dos Médicos dizer que se se aproveitasse uns espaços desaproveitados se resolvia o problema. Também vimos no Observador que há quem tente reduzir a polémica a uma questão de ciúmes entre o Hospital de Santo António e o de São João. Há quem diga que as crianças podem ir para o IPO do Porto. Nada disto me convence. O problema existe há 10 anos. O problema era tão sério que esta solução mereceu o patrocínio do governo, formalizado através de um despacho do Secretário de Estado da Saúde. Foi atribuída à Associação Joãozinho o estatuto de utilidade pública. O Hospital de São João agradeceu o empenho da associação e comprometeu-se a colaborar. O projecto teve o acordo do Hospital. As retroescavadoras entraram por ali a dentro.
E, de seguida, com as obras a decorrer como planeado, ainda no início, inviabiliza-se a sua continuação? Com o historial que o Estado tem de obras que ficam a meio empatadas por anos a fio, não deixa de ser irónico que se bloqueie uma obra financiada por mecenato com a desculpa de que pode ficar bloqueada por falta de financiamento.
Em resumo: nem se faz nem se deixa fazer. Como se costumava dizer na minha adolescência: nem faz amor nem sai de cima. As palavras não eram tão suaves, mas penso que se percebe o que eu quero dizer.
PS. Caros leitores e caras leitoras, no âmbito de uma investigação em Ciência Política, a decorrer no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e na Universidade do Minho, gostaria de pedir a vossa colaboração na realização de um curto inquérito (cerca de 1-2min, não mais que isso) que visa compreender as percepções e atitudes face a políticas do Governo Nacional. Os participantes deverão ter direito de voto em Portugal. As respostas são confidenciais e anónimas, sendo submetidas a tratamento estatístico em grupo. Aqui o Inquérito. Se, após a conclusão do inquérito, o enviar para os seus contactos seria fantástico. Para qualquer esclarecimento contacte: pedro.magalhaes@ics.ul.pt Este pedido é assinado por mim, pelo Tiago Abril e pelo Pedro Magalhães.