No contexto de uma democracia, há ameaças de um governo que arrastam implicações de tremenda gravidade. Uma delas é aquela que o ministro Pedro Nuno Santos lançou recentemente sobre quem se atrever a obstaculizar o projecto do aeroporto do Montijo. Perante a indisponibilidade de algumas câmaras municipais em dar parecer favorável ao projecto, assim inviabilizando-o, o governo está a preparar-se para alterar a lei e remover esse requisito do texto legal. Ou seja, para resolver um problema comum num processo negocial, o ministro propõe algo que deveria arrepiar qualquer democrata: eliminar freios e contrapesos da lei, aumentar os poderes de arbitrariedade do governo e passar por cima das câmaras municipais (e populações) que se opõem aos planos de obras públicas do governo. Ora, eu não sei avaliar tecnicamente se o projecto de aeroporto no Montijo é realmente a melhor opção para o país e para as populações locais. Mas sei isto: atropelar procedimentos democráticos desta forma é ultrapassar uma linha vermelha. E, independentemente da apreciação que se faça do projecto do aeroporto no Montijo, isto não pode ser aceitável.
Numa república liberal, como a portuguesa, o exercício do poder político está enquadrado por limites e travões. E, em 2007, foi exactamente isso que foi transposto (e bem) para a legislação. Quando então o governo (PS) fixou as condições de construção, certificação e exploração dos aeródromos civis nacionais, introduziu várias condições obrigatórias para a instalação e o funcionamento de aeroportos. São os chamados freios e contrapesos de um regime democrático. Não se poderia avançar sem parecer do INAC (Instituto Nacional de Aviação Civil), sem parecer positivo da Força Área Portuguesa, sem parecer técnico positivo da autoridade competente no domínio da meteorologia. E, ainda, sem “parecer favorável de todas as câmaras municipais dos concelhos potencialmente afectados, quer por superfícies de desobstrução quer por razões ambientais”. Está tudo no decreto-lei 186/2007, de 10 de Maio, em particular nas várias alíneas do artigo 5.º. Pode dizer-se que o decreto-lei é exemplar do ponto de vista procedimental: a decisão de construir e explorar um aeroporto só pode ser tomada por um governo quando validada por diversas entidades técnicas e pelos concelhos afectados, prevenindo assim uma tomada de decisão arbitrária e que ponha em risco a segurança ou o bem-estar das populações.
A existência de freios e contrapesos torna o processo político mais exigente e difícil? Claro que sim. Aliás, o objectivo é mesmo esse, porque é assim que funcionam as democracias modernas: procura-se impedir decisões arbitrárias e impõe-se a validação das decisões que afectam tantos por diversas entidades e por órgãos de representação política. Haverá formas de executar decisões que são mais simples, céleres e eficazes? Claro que sim, mas são também muito menos democráticas. Por exemplo: se um governo puder decidir como quiser, mesmo em detrimento da segurança ou da vontade das populações, certamente que o processo será muito mais rápido – mas simultaneamente muito menos passível de escrutínio e muito mais prejudicial para as populações. Eis o que pretende o ministro Pedro Nuno Santos. E eis aquilo a que os partidos se devem opor com veemência.
Sim, é certo que o governo não precisa dos partidos para alterar um decreto-lei, que é da iniciativa do governo. Mas o parlamento tem a possibilidade de solicitar uma apreciação parlamentar do decreto-lei e, eventualmente, revogá-lo. Tudo indica que a apreciação parlamentar será uma realidade, na medida em que o PCP tenderá a proteger os seus autarcas nas câmaras municipais em conflito com o governo. Resta, portanto, saber o seguinte: quando essa apreciação parlamentar subir ao plenário da Assembleia da República, haverá votos suficientes para revogar o decreto-lei? Contas feitas, com a oposição assumida de PCP e BE ao governo apoiado pelo PS, o desempate dependia do PSD – que, felizmente, se pronunciou contra.
Haverá muitos aspectos técnicos e dúvidas a discutir sobre o projecto do aeroporto no Montijo. Mas, na hora actual, tudo isso é irrelevante: o dossier está convertido num caso de risco para o funcionamento da nossa democracia. Seja-se contra ou a favor do projecto, aprecie-se menos ou mais a necessidade de um novo aeroporto, nada disso importa. O que está agora em causa é apenas isto: pode-se tolerar que um governo elimine freios e contrapesos de um processo democrático porque estes representam obstáculos à sua vontade? Não se pode, porque os fins não justificam os meios.