1. Acabo de herdar três peixes. Ainda se fosse para os comer grelhados mas não, são “de estimação” e habitam uma enorme bola de vidro onde a sua diminuta estatura – são magrizelas e minúsculos – se perde na imensidão da aquática morada. Eu não queria, mas o que tem de ser tem muita força e ainda o verão vai a meio. Este “ter de ser” não é senão o sinónimo, como dizer?, mais decente que encontrei para classificar a colonização exercida hoje pelos netos sobre os avós. Não é que eu não goste de peixes, não gosto é de extras. A já de si especialíssima idiossincrasia das férias, revista por uma casa (grande), pelas bocas sempre ávidas de filhos, netos e amigos dos netos, “coitados, têm que ter alguém para brincar”, as incessantes idas aos supermercados (misteriosamente nunca se vai a um só), a indisciplina que de imediato irrompe de pessoas e coisas, os risos e choros, zumbidos, altercações e amuos que de manhã à noite envolvem o ar, tornam no mínimo inconveniente qualquer extra. Mas os 9 anos do Luís não se comoveram, nem vacilaram: “os peixes ficam cá na quinta”. A “quinta” é evidentemente um eufemismo geográfico, porque nela ou fora dela não é senão sobre mim que desabará a compra da comida dos peixes, a saúde dos peixes, o conforto dos peixes, a segurança dos peixes.
“Ah, talvez o Hélder goste de ficar com eles até nós voltarmos no Natal”, lembrou o Vicente, neto número dois, e sim, a própria existência do Hélder que é filho da nossa empregada brasileira que se chama Neya, pareceu-me salvífica: vou negociar com ele, pagar-lhe até, para os peixes se sumirem para as profundezas de A-dos-Negros que é onde a Neya e o Helder vivem e onde não há nem um negro mas dizem que já houve.
2. A verdade é que o peso, as dificuldades e a incerteza que cobrem hoje os dias dos filhos – para além do facto de as mulheres trabalharem fora de casa – gerou uma proximidade inimaginável uma década atrás, de avós com netos, apagando as fronteiras da “distância” e trocando-a pela “cumplicidade”. Configurando aliás um inédito modelo de avós: acompanhantes, baby sitters, educadores, animadores, guarda-costas. Multiusos e sem horário. Uma quase revolução que um dia virá a ser estudada e estou só a resumir. Acresce que o verão, mais que o inverno, tem as suas estações e estados de alma: começa por ser o tempo mais desejado, transita para temporadas de alta tensão onde a pior indisciplina valsa ternamente com o mais puro júbilo e costuma rematar num miserável estado de ditadura “deles” sobre “nós”. Em resumo: netos, hoje, é sermos amorosamente escravizados.
3. Cá em casa há três pares de olhos resolutamente fixos em nós, reivindicando o mundo e ocupando criteriosamente o território. O nosso: da cadeira da sala onde o avô nunca mais leu o Economist, nem ouviu ópera, ao écran da televisão onde o Disney Channel veio para ficar todo o verão, passando pela “ocupação” exclusiva do tablet dos avós, à diária batalha campal para se irem deitar, até à singular ocorrência de não haver um centímetro quadrado de chão que não esteja coberto de objectos contundentes: legos pontiagudos, parafusos de rodas de automóveis, inquietantes monstros só com arestas, restos de brinquedos avulso. Ou bolas variadas que rolam e rebolam. Isso: é um milagre ainda termos as pernas inteiras! Pensando bem, o verdadeiro grande milagre é… resistirmos. Assistindo passivamente á recusa firme de um deles em tocar em vegetais ou de outro ignorar qualquer peça de fruta (o terceiro come tudo, só lhe falta devorar os talheres). Resistindo a não ir à praia, por exemplo, porque o Vicente, o Luís e o Martim descobriram (?) em uníssono, o que reforçou a solene declaração, que se maçam na praia, “aqui é muito mais divertido”, preferindo aos imensos areais da salgada Foz do Arelho os segredos de computadores e iPad, que como é óbvio manejam muito melhor que nós; ou tudo trocando pelo caseiro tanque de rega adaptado a piscina quase olímpica. Eu, que sou daquele Atlântico, tento furar este bloqueio praieiro com o pater famílias, mas é sol de pouca dura: logo nos acodem remorsos sem fundamento e arrependimentos deslocados, o melhor é largar os apetecidos areais e voltar logo para casa…
4. Voltar mas com o coração em festa. Sim, ao contrário do que possa parecer, apenas constato uma estranha forma de vida – a dos avós nos dias que correm – mas não a trocaria por outra, não me ocorrendo sequer quebrar a nossa assumida e sentimental rendição ao estado de sítio vigente. Adivinharam: as lamúrias iniciais são inversamente proporcionais ao amor por estes meninos de oiro, que nem sequer são mal educados, são simplesmente filhos do ar deste tempo; que vivem hoje em Londres depois de terem vivido – of all places – na Coreia do Sul, com paragem de meses em Singapura, (é a globalização estúpido!); falam inglês melhor que Jorge Sampaio apesar de terem 9, 5 e 3 anos e enlevam os seus avós mesmo que em adorável/extenuante regime de full time job estival. E como – evidentemente! – os achamos inteligentíssimos, dotadíssimos (e bonitíssimos!) não duvidamos por um segundo do brilhante lugar cativo que virão a ter no futuro (se o mundo conseguir durar até lá, coisa que actualmente me produz as mais pesadas dúvidas).
5. Mas o que interessa é que queixando-me eu ou anunciando inutilmente que “é a última vez que…”, tudo porém me parece um bom sinal: o de que eles – netos – existem, e de que nós cá estamos para vivermos esse deslumbrante privilégio.
Tenho a certeza de que quem neste momento está, digamos, a viver o mesmo que nós, aplaude e depois assina por baixo.