1 Que o corpo “era entregue no sábado”, era quando podia ser. O Nuno tinha morrido na quarta feira de manhã, num hospital. Sozinho. É assim que se morre hoje, um anonimato gelado que nos torna o gesto impotente e seca a alma. Erguendo fronteiras subitamente intransponíveis entre nós e a irremediabilidade da morte. Partidas brutais que abastecem a fome das estatísticas. O Nuno era meu cunhado, o mundo gostava dele e queria chorá-lo. Morreu num hospital público mas nunca se interiorizará o suficiente o quanto os “familiares” do cortejo fúnebre das “fatalidades” ficarão a dever à generosidade atenta de uma enfermeira, um auxiliar, uma médica, que conseguem, no meio do incêndio, agarrar num telefone e murmurar “se quiserem vir despedir-se, é melhor ser hoje”. Nunca nem de longe nem de perto, se agradecerá o suficiente a esses interlocutores sem rosto oferecerem-nos o podermos guardar o sorriso desmaiado, um toque de mãos, o último olhar de alguém. Breve raio de sol por entre o extenuante, incerto, infindável nevoeiro dos dias. Tão denso que já não há ninguém que não traga consigo o luto de um familiar que partiu, por Covid ou não, tanto faz. Contará porventura bem mais a trágica circunstância de morrer hoje. Assim como se morre. Em tempos feitos deste nevoeiro.

2 Passaram-se quatro longos, despidos dias e chegou um caixão. O do Nuno. Foi “quando pôde ser”. O segundo acto desta coreografia de desconhecida impiedade também nos privou de quase tudo, o cerco da pandemia roubou-nos a morte feita da proximidade com que a conhecíamos e celebrávamos.

É quase a tactear e quase semi-clandestinamente que se entra agora numa igreja ou se pisa o chão de uma capela mortuária que muitas vezes mal conhecemos ou mesmo onde nunca estivemos. Mas vamos. Vamos porque é de “lá” que mesmo tacteando nos pode, mesmo que apenas a alguns de nós, de nós, vir o consolo, a palavra inspirada de um sacerdote, o eco de um cântico, o toque do sagrado sobre o sentido da perda, a infinita possibilidade da renovação. E quem sabe, outros encontrarão na paz silenciosa de uma igreja o melhor lugar para a despedida

A morte sempre me parou a vida, pondo-me automaticamente em sentido. Nunca a disfarcei ou lhe virei costas, nunca fui capaz de fazer de conta. Sempre a revesti dos seus rituais, que eram – são – para mim o inseparável reconhecimento da inteira dignidade que me merece alguém que se despede para não voltar. O luto, a perda, a pena, necessitam de instrumentos porque o combate é demasiado desigual. É preciso partilhar lágrimas e abraços, murmúrios e preces, a dor e o indizível. São precisos afagos e gente a nossa volta para os dar, a partida de quem amamos interpela um choro comum. E não confinado na superfície solitária de um ecran de computador. Haverá mais derisório que estar morto “on line”?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

3 “Trago em mim uma camada de mortos, só não sei até que profundidade” e há muito que ando às voltas com esta frase de Raul Brandão e sabe Deus com que legitimidade e autoridade a tenho escrito e dito. Carrego também eu essa “camada” comigo, não sabendo quantos mortos conto já entre os meus, os de sangue, ou os do coração, que é o outro nome dado aos amigos-mais-que-família. Não posso saber porque são incontáveis os que não deviam ter partido e partiram. E os que não podiam ter-se despedido e se despediram.

4 A Clara também não podia partir mas partiu e também por estes mesmos dias. Ela não sabe mas raríssimas vezes me foi dado testemunhar de tão de perto, tão concretamente, tão fisicamente o heroísmo. Ficará espantada com este meu escrito ela que era um cipreste, não lhe ocorrendo nunca nem ao de leve apiedar-se com o seu tão estranho destino. Nem saberia como havia de o fazer, os ciprestes não se vergam.

“A minha mãe passou por uma experiência limite nestes últimos meses, sem nunca se queixar, sem deixar que a vissem menos bem e até dando dando força a outros, como a mim próprio. Só em hospitais esteve mais que cem dias, completamente isolada desde Junho, a ser vista por pessoas vestidas de astronautas… E no quarto do Curry Cabral arranjava-se e punha a cabeleira para participar em reuniões diariamente sem denunciar onde estava. Nunca perdeu o sentido crítico, nem o humor. Nunca desistiu. “Os ciprestes também nunca desistem de si próprios”, disse eu ao seu filho.

Não que eu fosse das suas amigas mais próximas mas que importância? Na impossibilidade de a poder ver, curar, salvar, levar para casa ou sequer consolá-la, tinha-me ocorrido no verão passado estimular a sua vivíssima veia criativa: porque não escrever aqui mesmo para o Observador a terrível experiência porque passava, desafiava eu ao telemóvel? Uma experiência, ou melhor dizendo, uma travessia, que ela fazia daquela forma aparentemente tão como dizer, bem disposta, risonha, coloquial, enérgica e afinal de contas simplesmente heroica? Um calvário que a Clara determinou ser vivido segundo um só mandamento: o sofrimento era só dela, nem um sinal exterior dele por ténue que fosse devia escorrer para seus filhos. (Aflitos e já tão magoados pela morte do pai, ocorrida há não muito tempo e após também dezenas e dezenas de dias em cuidados intensivos devido á bactéria assassina que o havia de vencer.)

Um dia a Clara mandou-me um esboço de um texto onde a asa da gratidão e a do humor voavam ambas sobre as palavras que escrevera. Gratidão pelas pessoas que cuidavam dela e a quem ela por vezes “pedia que a abraçassem mesmo vestidas de astronautas”; e o humor com que pintava as piores situações transformando-as em divertidas anedotas. Concordámos as duas que o texto que ela mandara, dada a experiência que relatava, merecia maior desenvolvimento e justificava mais detalhe mercê da sua própria invulgaridade. Depois “se veria”, e porque havíamos de achar uma e outra que não tínhamos esse tempo? Não tivemos.

“Muitos são os chamados e poucos os escolhidos”. A Clara foi escolhida.

5 O heroísmo nunca é um acaso, não se passa incólume por ele, o facto de o testemunharmos confere-nos pesada responsabilidade. Como por exemplo a de perceber que bem vistas as coisas, a santidade está afinal mais vezes do que se pensa, ao alcance da mão.

Querida Clara fico a dever-lhe o ter-me explicado tão bem isto.

6 Mesmo à hora de entregar este texto chega-me a notícia da morte do Luís Salgado Matos. Também sozinho, também num hospital. Um grande, grande intelectual, amante, praticante e entendido na arte da política, sociólogo respeitado, autor reputado. Foi para mim um cúmplice antes do mais e não direi isto de muitos. Um amigo “daqueles”; um colega intermitente de uma tertúlia radiofónica de bom proveito e boa memória “A Prova dos Quatro” na Renascença; o melhor dos companheiros na histórica viagem de Estado (alguém um dia deveria contá-la tal e qual ela foi) do então Presidente Soares (também ele de tão boa memória) à ainda União Soviética; um comensal mais-que-frequente do Café do Chiado quando por lá oficiavam os Freitas da Costa. E onde o Luís, personagem sui-generis e brilhantíssimo, arqui-imprevisível, desconcertante e meio louco, nos desafiava com pontos de vista inesperados, atirando para cima da mesa polémicas diversas e discussões incandescentes, num fio de conversa que nunca acabava de se desenrolar. Quase madrugada não havia mais remédio do que lembrar-lhe que era “louco” e partir dali para fora. Recorro intencionalmente ao lado solar das coisas e da vida para me congratular hoje com o que partilhámos ontem. Muitas coisas, justamente. Daqui lhe agradeço. A hora é de vésperas, a recordação é um aleluia.