Na manhã de 3 de janeiro de 1889, um Nietzsche já muito doente foi abordado por dois polícias depois de ter causado distúrbios públicos nas ruas de Turim. Embora existam muitos registos do acontecido, a versão mais frequentemente repetida logo após a sua morte relatava que Nietzsche, tendo testemunhado o açoitamento de um cavalo na principal piazza da cidade italiana, correu até ele e abraçou-se-lhe ao pescoço, desafiando durante largas horas, de revólver em punho, Genghis Khan, Napoleão Bonaparte, Alexandre Magno e quem quer que se aproximasse, com sonoros impropérios contra escadas, jardins e repuxos. Depois colapsou.

A dor dos mais garbosos bigodes de Weimar (embora também eu subscreva uma melancólica e particularíssima irritação com repuxos) conduzi-lo-ia a partir daí por um calvário de internamentos que culminariam na sua morte.

Elisabeth, a irmã que viera ajudá-lo a preparar a edição de O Crepúsculo dos Ídolos, escreveu nas suas memórias que Friedrich, nos últimos dias, febril, implorava pela felicidade, invocando um nome estranho. Desprovido já de um discurso coerente, aquela dor acabou por fim por engoli-lo: “a felicidade não tem rosto, apenas costas, razão pela qual a reconhecemos apenas quando se afasta”, dizia.

Em latim, dolere poderia significar «sentir», mas também «causar», dor. A respectiva raiz indo-europeia (*del- ou *dal-), por seu turno, referia-se à árvore ferida por um machado ou ao ferro batido e rebatido a golpes de martelo no fogo e na bigorna. Mais genericamente, a qualquer acto de gravação com um instrumento de entalhe. Nenhuma etimologia poderia ser mais precisa e lancinante: é exatamente assim que – gravados, batidos, feridos – nos sentimos quando provamos a dor.

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Nenhum homem houve, em toda a história da linguagem humana, que se pudesse dar ao luxo de dispensar as palavras para dizer o quanto dói, esperando que passe, a dor da sua alma ferida, maltratada, destroçada.

Talvez com o tempo a dor se sublime, se domestique, se desloque, mas não passa, não passa nunca. Quem sabe se não era por isso que os gregos, sem qualquer medo das palavras, mesmo das mais pungentes, utilizavam para doer um verbo rude e ríspido – δέρω (déro) – esfolar?

Quem sou eu para vos convencer de que as vossas, ou as minhas, feridas ainda abertas, com muito sal grosso espalhado sobre elas, um dia se transformarão em cicatrizes? As memórias dos golpes de outrora, sobrevivas aos próprios golpes, permanecem, mais indeléveis do que tatuagens em pele tisnada, imóveis, como, em sótãos esconsos, aquele amor verdadeiro e puro que para lá atirámos. Quando muito, chegará o dia em que deixaremos de cerrar os dentes e de chorar. E mesmo isso…

“A vitória, como dizem os japoneses, pertence a quem souber sofrer um quarto de hora mais”, escreveu Marcel Proust na sua Recherche. Os mesmos japoneses que acreditavam que, quanto mais os vasos de porcelana estalavam, mais valiosos se tornavam. Importava era colar os pedaços, não com silicone nem com miraculosos produtos que prometem tudo reparar ocultando a fissura, mas com a pureza do ouro fundido, que une aquilo que se despedaçou sem qualquer vergonha disso, pelo contrário: quanto maior o brilho, maior o sofrimento. E assim adquire valor e dignidade.

São precisamente as cicatrizes que determinam a beleza. Uma beleza desconhecida de todos daqueles que jamais escorregaram pela ladeira da dor – nem que apenas por “um quarto de hora”.

A palavra portuguesa dor, do latim dolor, em sânscrito era dalati (ou darati), “rebentar”, “lacerar”, “fender” – precisamente como quando o coração se racha em dois. E nós com ele. Aquela «machadinha» que nos corta em dois – ou em três, em quatro ou cem – quando a dor se assenhoreia de nós e nos arrasta por escadas, jardins e repuxos, abraçados ao cavalo do desespero, do erro, do arrependimento, da culpa, da humilhação ou da vergonha.

Ao reflectir sobre esta etimologia, avanço com dificuldade e com a respiração suspensa – como Dâmocles, com a espada pendurada sobre a cerviz por ordem de um tirano: bem sei que a dor do passado pode ser ensinamento e lição, mas também que ela estará sempre de vigia, imprevisível, ao virar da esquina, com paciência de réptil, lambendo com a sua língua bífida o azedo aroma de uma nova fissura sempre iminente. Ainda que se quebrem as nossas costelas e a nossa alma estale como vidro, mestres do cadinho, saberemos acarinhar a dignidade de cada um dos cacos com o delicadíssimo ouro fundido pela compaixão, cuidado e paciência.

Por estranho que pareça, é bem possível que, sob 30 anos de pó e cinza, dormitem, prontas a ressuscitar, danças, perguntas, fotos, lacunas, praias, tábuas que rangem – true love waits / in haunted attics – mesmo que ninguém há décadas as pise: a felicidade costuma ser pequena, comum, discreta, simples. Um par de olhos para vê-la e um coração ligeiro para vivê-la é tudo quanto basta.

Como preciosa e translúcida cerâmica, precisamos de cuidado, de respeito e amor. E daquele abraço (mesmo que sem braços) leve, seguro e luminoso como um lençol a secar ao vento, que cheira a bem, a casa e a sabão de Marselha – provisões diminutas mas essenciais para fazer face à intempérie.

E, sobretudo, precisamos de, quando sofremos, dizê-lo, falar, dizer essa dor. Regressar ao silêncio? Como? Por que veredas, se a nossa força advém precisamente do facto de as palavras, ao contrário de nós, nunca se quebrarem? Ainda que em mil fragmentos despedaçássemos um dicionário, jamais ele emudeceria.

E, mesmo que assim fosse, quem nos garante que naquele torvelinho de sílabas rasgadas não dormitaria o secreto nome da felicidade? E se de novo ousássemos pronunciá-lo, quem sabe se ela não se voltaria e não poderíamos contemplar, por fim, o seu rosto?