Portugal está, há muitos anos, numa letargia estável, numa decadência progressiva, indolor e insípida, agora animada pelo relato ao minuto de guerras de alecrim e manjerona entre altas personalidades da República ou pelo debate, a três anos, das eleições presidenciais. Entretanto, entre lamentos e protestos desconsolados, mas pouco reactivos, vai vendo passar a falta de legislação e de decisão política no muito que, de estrutural, falha e falta, e o excesso de legislação avançada e de accção expedita na “implementação” dos artigos de fé de todo um novo catecismo, alheio ao povo, supérfluo, absurdo mas letal.

Tem sido esta a tónica da Terceira República e, nestes meses que faltam para o cinquentenário da Gloriosa, não é estranho que se tenha intensificado. Afinal, muitos dos principais artistas e figurantes ainda estão em cena e alguns até refinaram os talentos.

A Espanha é diferente. Até porque a Espanha passou antes de nós pela experiência, sempre colectivamente traumática, do fim do Império. Para eles, foi em 1898, com a independência, sob protectorado norte-americano, de Cuba e das Filipinas. Depois disso, tiveram uma longa guerra civil, ideológica e sangrenta. E os vencedores impuseram um regime autoritário. Bastante mais autoritário que o nosso.

O desfecho dos dois regimes ibéricos foi também diferente: em Portugal houve um golpe de Estado militar, seguido de uma ruptura institucional e da tentativa de uma revolução social; em Espanha houve uma transição regulada por Franco, que deixou intocadas as estruturas sociais, mas que mexeu na política do Estado. É um paralelo interessante, ligado ao problema central da unidade e identidade do Estado e à sua garantia e defesa em diferentes regimes políticos.

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Em Portugal, a raiz do apoio ao regime anterior pelas pessoas da minha geração que o apoiaram a partir de 1961, no princípio da guerra de África, estava na defesa do Ultramar. Nas gerações anteriores, à direita, havia a experiência da Primeira República e a forma como os Democráticos de Afonso Costa, e depois de António Maria da Silva, se tinham perpetuado no poder nesses 16 anos, usando e abusando da Constituição e das leis, recorrendo à violência de milícias partidárias, tratando os católicos e os monárquicos como não-cidadãos, perseguindo até os republicanos conservadores.

Hoje, nos 50 anos que o regime já leva, não são esses os métodos.  A Esquerda voltou a apoderar-se do Estado-aparelho, controla grande parte da comunicação social mas, apesar de estar há meio século no poder, continua a apresentar-se como uma comunidade-vítima de “antifascistas perseguidos”.

Em Espanha não foi assim: ao contrário de Salazar, Franco preocupou-se com a sucessão, mesmo depois de saber que a Espanha ia ser uma monarquia parlamentar democrática, com partidos de todas as cores.  Os franquistas aceitaram o Rei – e as estruturas económico-sociais da Espanha desenvolvida do pós-anos 60 – como garantia de estabilidade política na transição; e as esquerdas, aceitaram-no como garantia de que os militares não interviriam pela força, apesar do terrorismo separatista da ETA, cujas vítimas rondaram o milhar.

Do terrorismo da ETA à longa marcha de Pujol

Mas com a democracia, os movimentos separatistas no País Vasco e na Catalunha constituíram-se em partidos políticos, de natureza mais “burguesa”: o Partido Nacionalista Vasco, no País Vasco, e o Partido Convergència i Unió, na Catalunha.  O partido catalão e o seu líder Jordi Pujol apostaram numa estratégia não violenta, baseada no poder cultural.  Esta estratégia rumo ao separatismo traduziu-se no chamado Programa 2000, onde se configurava a fixação de uma identidade ou de uma “personalidade catalã” por via do ensino escolar e universitário da língua e da cultura da comunidade autónoma. Da criação desta “personalidade”, fez também parte o estabelecimento de uma História da Catalunha, com vista à consolidação de uma nação catalã (Països Catalans) no quadro da União Europeia, e de um “memorial de queixas” contra Madrid.

Este programa foi prosseguido durante o longo governo de Pujol à frente da Generalitat e, com o tempo, praticamente duplicou o número de catalães que se sentiam mais catalães que espanhóis; número que chegou a rondar a metade.

A questão nacional, da identidade nacional, ressuscitada no século XX, está, pois, no centro da vida política espanhola. Enquanto a oposição de classe ou a repartição de renda são quantitativas e negociáveis, como, apesar de tudo, o são também as diferenças ideológicas (mais conservadorismo ou mais progressismo), a identidade nacional e a identificação com uma ou outra comunidade como primeira destinatária da lealdade política dos cidadãos não deixa grande espaço para negociações ou acomodações.

Ora das eleições de 23 de Julho passado resultou um Parlamento em que, para ascender ao poder, a coligação da Esquerda – PSOE-SUMAR – tem necessariamente que contar com os partidos separatistas (Junts, da Catalunha, com 7 lugares, EM Bildou e EAJ-PNV do País Vasco, respectivamente com 6 e 5 lugares).

A asfixia do centro

Convém não esquecer que o fim do bipartidarismo espanhol (PSOE versus Partido Popular) ficou também a dever-se à questão catalã. Primeiro foi o fenómeno Ciudadanos, um partido do “centro”, que marcou o protesto dos catalães que se sentiam mais espanhóis que catalães, mas que não gostavam do PP.  Porém, em tempos de radicalização – uma radicalização provocada precisamente pela questão nacional da Catalunha e pelos novos ventos da Europa –, o Ciudadanos, que em 2019 tinha sido o terceiro partido nacional, perdeu-se pelo seu “centrismo”. E veio o Vox, como correcção ao que muitos eleitores da direita espanhola viram como a fraqueza do Partido Popular de Pablo Casado na questão catalã. O Vox surgia também enquadrado na vaga europeia das direitas nacionais conservadoras e populares, alcançando um resultado surpreendente, ao eleger 52 deputados e passando a ocupar o terceiro lugar no Parlamento, a seguir ao PSOE e ao PP. Nas últimas eleições, o voto útil no PP penalizou o Vox, que, ainda assim, com 33 deputados, continua a ser o terceiro partido.

O Vox subiu porque soube pegar na agenda europeia de combate aos projectos  das novas esquerdas contra os valores nacionais, religiosos e identitários; mas subiu também, e essencialmente, por ter sabido capitalizar a reacção do nacionalismo espanhol à ameaça secessionista da Catalunha.

Acontece que a questão nacional não divide apenas os partidos “nacionalistas” dos “nacionalismos regionais”: abre cisões noutros partidos, nomeadamente no PSOE. Cisões que levaram à recente expulsão de Nicolás Redondo Terreros, dirigente socialista, filho do histórico Nicolás Redondo, por ter criticado a negociação da amnistia.

Mas se a oposição da Esquerda a um governo de coligação PP-Vox é suficiente para bloquear essa solução, a geringonça esquerdista PSOE-SUMAR também não tem a vida facilitada, já que, para passar no Parlamento como governo, precisa do voto dos partidos separatistas, especialmente do Junts, de Puigdemont.  Ora, para apoiar a geringonça, o Junts exige uma amnistia para os condenados pelo referendo ilegal da Catalunha, entre os quais o próprio Carles Puigdemont, exilado em Waterloo, onde foi visitado, na sexta-feira 15 de Setembro, pelo Presidente do Partido Nacionalista Vasco, Andoni Ortuzar.

A direcção do PSOE, com Sanchez e outros aparatchiques, parece disposta a todas as cedências para guardar o poder (a amnistia e a instituição do Catalão e do Vasco, a par do castelhano, como línguas oficiais do Estado espanhol), mas a eventualidade de tais concessões começou já por dividir o PSOE, com os líderes históricos Filipe Gonzalez e Alfonso Guerra a criticarem-na aberta e duramente.

A questão nacional, que é a grande questão que divide a Espanha, parece estar para durar.

 

PS: Ciclovias – Em 1640, quando da Restauração, Portugal beneficiou da súbita concentração das tropas espanholas na revoltosa Catalunha; em 2024, parece que é a Catalunha que vai beneficiar da súbita concentração do pelotão de ciclistas da “Vuelta a España” em Portugal. É que desta vez – há quem diga que a bem do nosso turismo e restauração – a Vuelta vai começar em Lisboa e acabar em Madrid… sem passar pela Catalunha.