A vitória do Partido Popular e do Vox nas eleições municipais e autonómicas em parte de Espanha vem na linha de uma mudança política e ideológica mais geral que começou há cerca de vinte anos e que se acentuou em sucessivas crises globais, regionais e nacionais.

Há um grande avanço da direita em Espanha ­– melhor, das direitas: da direita conservadora e liberal do PP e da direita nacional-conservadora e popular do Vox. Em Espanha estão bem presentes estas duas direitas: uma mais antiga, ainda com traços centristas, do tempo do reagrupamento anti-esquerda na transição democrática dos anos 70; a outra, nascida do agudizar da questão nacional espanhola, com a escalada do separatismo catalão e o que muitos eleitores terão considerado a débil defesa da unidade de Espanha da liderança do PP.

Mas enquanto a Esquerda, pelo seu internacionalismo, tende para uma certa uniformidade de princípios e causas, a Direita, precisamente pelo reconhecimento do factor nacional e identitário, das raízes históricas e dos problemas específicos de cada comunidade, tende a ser mais dispersa e diversa, embora dentro de valores e princípios comuns.

Entretanto, o facto de a Esquerda ter trocado a classe operária, os danados da terra e o internacionalismo socialista pelas minorias étnicas e sexuais, os danados do planeta e o globalismo hedonista, depois dos “anos de chumbo” que o fim da URSS e a derrota na Guerra Fria trouxeram, mudou muito o terreno político e partidário, a reacção à direita e as opções dos protagonistas.

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O juízo do voto popular

Há, no entanto, uma questão que parece arrumada – a aceitação do jogo e das regras democráticas pelos partidos radicais, quer da Direita quer da Esquerda.

A Direita abandonou as formulações reaccionárias que recuperavam os valores do Ancien Régime ou a percepção negativa do voto que lhe vinha do fascismo e das soluções cesaristas autoritárias e converteu-se ao voto popular. Não deixa de ser interessante esta aceitação do voto como juiz indiscutível da legitimidade do poder por movimentos da direita radical, teoricamente “anti-sistémicos, como os Fratelli d’Italia, no poder em Roma, ou o Rassemblement National, o maior partido político francês.

Também as esquerdas mais radicais e extremas parecem estar, nesta matéria, convertidas: ver os tradicionais admiradores de Trotsky e de Mao arvorados em mestres da democracia, a condenar o “iliberalismo” e os “excessos” alheios e a acatar o voto e a competição eleitoral (outrora embustes inerentes às democracias burguesas), chega a ser comovente, até para um velho pessimista antropológico como eu.

Passando ao concreto, em 28 de Maio – uma data pesada para os republicanos Democráticos locais de há 97 anos – vamos aos números das eleições espanholas. Os tais números que exprimem a vontade da maioria   que veio substituir a vontade do Altíssimo dos reis e das dinastias pela Graça de Deus; os mesmos números dos “rituais eleitorais, controlados pela Burguesia” que vieram substituir o poder conquistado pela revolução permanente e a acção das massas e do internacionalismo proletário, ou o poder “no cano das espingardas”, dos maoístas.

Tendo o povo votado em Espanha para decidir o seu destino, deu-se que as duas direitas, PP e Vox, tiveram, na comunidade de Madrid, 54% dos votos contra 37% das esquerdas; na comunidade valenciana, 47% contra 46%; em Aragão 47%; em Castilla la Mancha, 46,6%; nas Baleares 49%; nas Astúrias 45%…

A ascensão do Vox

Em termos globais, a Espanha que sai do escrutínio de Domingo 28 de Maio de 2023 é uma Espanha onde o PP é o primeiro partido, com 31,5%, o PSOE, o segundo, com 28%, e o Vox o terceiro, com 7,2%.

Note-se que o Vox não concorreu em todas as autarquias e que o partido de Santiago Abascal consolidou nestas eleições a sua condição de força incontornável para qualquer alternativa contra a Esquerda.

Com mais de milhão e meio de votos (o dobro dos que obteve nas eleições municipais de 2019), o Vox passou de 9 a 13 lugares no parlamento valenciano, de 3 a 7 em Aragão, de 3 a 8 nas Baleares, de 1 a 9 em Múrcia e de 2 a 4 na Cantábria, estando agora representado em todos os parlamentos regionais. No total, em número de autarcas, o partido cresceu de 530 para 1687. Os reveses foram em Madrid, onde desceu de 13 para 10 lugares e em Ceuta, onde esperava ser a primeira força política. Na Catalunha, teve também uma progressão muito significativa. E se, em Madrid, o Partido Popular alcançou a maioria absoluta, foi graças ao pendor pouco centrista e claramente direitista de Isabel Ayuso, que levou algum eleitorado do Vox a votar PP.

O Vox tem ideias, tem quadros e começa a ter uma estrutura. À semelhança de outros partidos da direita nacional europeia, está perfeitamente identificado e já não vai poder ser apagado ou posto em causa pelo voto útil.  Os partidos de protesto que partem de uma radicalidade de estilo ou de chefia, mas aos quais falta uma identidade ideológica doutrinária, tendem a regressar ao anonimato assim que, na sua área social e política, surja uma liderança mais conservadora, mais popular, mais carismática. Não é o caso do Vox, nem de Santiago Abascal.

A “coligação Frankenstein”

O curioso é que, em Espanha, onde o partido centrista dos Ciudadanos desapareceu, se passe, à esquerda, um fenómeno em nada semelhante ao que se está a passar à direita. Com efeito, depois da queda de Ciudadanos, um partido que tinha mais de 2000 autarcas, a Nova Esquerda do Unidas Podemos sofreu sérios reveses eleitorais, tanto em Madrid, como em Barcelona, onde a “alcaidesa”, Ada Colau, promotora das agendas radicais, foi vencida por Xavier Trias, que liderou uma coligação de socialistas catalães, com a lista Barcelona en Comú. Já no País Vasco, os vencedores foram os independentistas radicais do EH-Bildu, que progrediram muito na votação popular, ameaçando a hegemonia do Partido Nacionalista Vasco.

A coligação de Pedro Sánchez foi constituída em Janeiro de 2020, depois de duas vitórias do PSOE em Abril e Novembro de 2019, mas que ficou aquém da maioria absoluta. Foi após o segundo sucesso-insucesso do PSOE que Sánchez decidiu formar uma coligação com a extrema-esquerda de Pablo Iglesias, a Unidas Podemos – uma geringonça à espanhola, a que chamou “governo progressivo”. Nessa altura, ultrapassando vários abismos entre os dois partidos, incluindo uma profunda hostilidade pessoal, os dois líderes, Sánchez e Iglesias, avançaram para um acordo. A passagem deste governo de coligação, a que os seus inimigos chamaram “coligação Frankenstein”, ficou também a dever-se à abstenção dos separatistas catalães.

Foi ainda nessas eleições de Novembro de 2019 que o Vox de Abascal teve a confirmação do seu sucesso; um sucesso baseado na “questão nacional”, isto é, nos riscos do separatismo catalão para a unidade de Espanha. Entre a eleição de Abril de 2019 e a de Novembro, o Vox dobrou o número deputados para 52, nos 350 do parlamento de Madrid, passando a ser o terceiro partido de Espanha, depois do PSOE e do PP.

O fim do Centrão político, com um partido mais ao centro-centro e outro mais ao centro-esquerda, modelo que imperou durante décadas, é um fenómeno comum à maior parte dos países europeus. A incapacidade de os velhos partidos sistémicos lidarem com toda uma outra conjuntura económica e, sobretudo, política e cultural, levou ao aparecimento de novos partidos, às vezes nascidos do nada. Na maioria dos casos, o rastilho foi a imigração de populações com características religiosas e culturais dificilmente integráveis nos países de acolhimento. É o que acontece em França, com o crescimento do Rassemblement National, de Marine Le Pen.

Sánchez e as duas direitas

No dia seguinte a uma eleição em que perdera em toda a linha, ao anunciar a dissolução do Parlamento de Madrid e a convocação de eleições legislativas gerais para 23 de Julho, Pedro Sánchez jogava uma carta arriscada, mas que criava um novo “facto político”, capaz de amenizar as especulações sobre a derrota e alguma ressaca de culpabilização no próprio partido. Assim, dissolvendo a “coligação Frankenstein”, explorava, a quente, a divisão dos seus inimigos.

O PP precisa dos conselheiros e autarcas do Vox para fazer maioria na maioria das autonomias e municípios e Sánchez conta desencorajar Feijoo de se coligar com o Vox para governar, agitando o fantasma extremista.  Conta também que Abascal, reagindo às eventuais “linhas vermelhas” de Feijoo, não facilite governos minoritários do PP.

É uma jogada arriscada, mas não a fazer seria pior para Sánchez. Veremos como lhe respondem os seus inimigos das duas direitas.