O país mergulhou numa polémica sobre como e onde receber o novo presidente do Brasil, Lula da Silva. Uma estranha e triste polémica. Estranho que pouco ou nada se falou da relação entre Portugal e o Brasil e do interesse nacional nesse contexto. Triste que, aparentemente, os nossos partidos acharam que o 25 de abril é uma coisinha nossa, estritamente nacional, eventualmente até uma coisinha deles.

Prioridade evidente

A independência do Brasil, em 1822, há dois séculos, não quebrou fortes interdependências com Portugal. Até à década de 1950 o Brasil continuou a ser o principal destino da emigração portuguesa. A principal “colónia” portuguesa, desde logo em termos económicos, durante todo o século XIX e boa parte do século XX, foi a chamada “colónia portuguesa” no Brasil, ou seja, a vastíssima comunidade portuguesa no Brasil. As suas remessas para familiares na pátria foram um dos grandes amparos da economia portuguesa e a sua defesa era uma prioridade da nossa ação externa, independente de mudanças de regime, de D. Carlos a Salazar passando por Afonso Costa. O Brasil é um bom exemplo de como a política externa não pode, ou melhor, não deve ser um mero instrumento de política interna. Estas vagas de migração (e exílio político) nunca pararam completamente, e várias vezes se inverteram ao sabor de crises do lado de cá e de lá. O resultado é que hoje Portugal tem a maior comunidade de brasileiros na Europa e a segunda maior no Mundo.

Esta foi por vezes uma história complicada, com crises ocasionais. Podemos confortar-nos com o facto de que sempre foi uma relação muito resiliente e certamente mais relevante do que com qualquer outro país com peso comparável a Portugal. Duvido que a viagem de Estado de Lula da Silva, prevista para Abril de 2023, por muitos incidentes que de forma irresponsável algum partido português possa provocar, seja tão aventurosa como a do presidente-eleito Hermes da Fonseca, que estava de visita a Portugal aquando da tomada de poder pelos republicanos, em 4 e 5 de outubro de 1910. Ainda assim, parece de elementar bom senso evitar passar a ideia de que será arriscado um presidente do Brasil vir de visita a Portugal. Estou à vontade para o dizer porque rejeitei aqueles que argumentavam, em 2018, que Portugal não devia tentar ter boas relações com o presidente Bolsonaro.

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Um pretexto

Sobre isto não quero perder muito tempo. Confesso que quando ouvi o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa anunciar, perante um silêncio generalizado, que o Presidente Lula faria uma visita de Estado a Portugal que “culmina na participação na cerimónia do 25 de abril”, entendi que isso queria dizer que falaria na cerimónia na Assembleia da República. Não via outra forma de participar, ia inaugurar oficialmente uma exposição floral ou oficialmente marchar na Avenida da Liberdade? Assistir à cerimónia oficial na galeria do parlamento – coisa que até eu já fiz – não é propriamente participar. Assistir é só isso, assistir, ou seja, o inverso de participar. Certamente teria sido bom confirmarem que o parlamento se tinha decidido nesse sentido. Parece claro que em tempos de maioria absoluta esta foi uma ocasião para a oposição mostrar que o governo não manda tudo num sistema, cada vez mais, de presidencialismo do primeiro-ministro. Mas não seria melhor falarmos do essencial? E o essencial são duas coisas. O 25 de abril não é uma realidade exclusivamente nacional. E a eleição de Lula pode melhorar as relações luso-brasileiras.

O 25 de abril não foi só nacional

Samuel Huntington é dos cientistas políticos mais lidos das últimas décadas. Fala de uma Terceira Vaga de Democratização em que o 25 de abril de 1974 é um marco fundamental de partida. Uma vaga que depois se estende à América Latina e à Europa de Leste. Claro que qualquer processo de democratização bem-sucedido resulta sobretudo de causas internas. Mas o contexto externo é importante, como fonte de inspiração ou o contrário, apoiando ou obstruindo. É, por isso, que as mudanças de regimes muitas vezes surgem em… vagas. Por exemplo, a vaga liberal, em 1848, na Europa, ou a Primavera Árabe, em 2011. É claro que o 25 de abril influenciou e animou os democratas brasileiros. Como cantou Chico Buarque “foi bonita a festa, pá!” Para citar outra música famosa, de Caetano Veloso, as democratizações ibéricas ajudaram a mostrar que a Ibero “América católica” não estava condenada a viver sujeita a “ridículos tiranos”. Portanto, a ideia de que, por regra, só os portugueses podem falar sobre o 25 de abril é errada. E a ideia de que há donos do 25 de abril é muito pouco democrática.

Uma oportunidade nas relações luso-brasileiras

O que representa Lula no meio de tudo isto? Há quem insista em só ver nele o líder do Partidos dos Trabalhadores que não fez a devida mea culpa sobre casos de corrupção envolvendo biliões de reais. É legítimo que os brasileiros opostos às políticas mais esquerdistas do PT continuem a fazer-lhe oposição. Mas não cabe a Portugal ou aos partidos portugueses fazer oposição ao presidente brasileiro. Ele foi libertado pela justiça e democraticamente eleito. Enfrentou a tentativa de impedir a sua posse e apelos públicos ao derrube pela força da democracia. E a história de Lula não começa em 2023. Ele foi um dos grandes protagonistas, como líder sindical, do amplo movimento social que forçou a democratização do regime militar.

Por fim, Lula tem sempre dado mostras de estar interessado em boas relações com Portugal. Nos dois mandatos anteriores veio a Portugal 6 vezes. Não valorizar isso devidamente para marcar pontos na política interna é um evidente erro do ponto de vista da defesa do interesse nacional. Note-se que o Presidente Bolsonaro nunca visitou Portugal em qualquer das suas vindas à Europa. Resultados concretos da presidência de Lula logo veremos. Seria especialmente importante a ratificação do acordo UE/Mercosul, num momento em que a Europa precisa de parceiros no Sul global e de alternativas fiáveis na importação de alimentos, energia e minerais. Portugal tem sido um dos grandes defensores do acordo que muito poderia aumentar o nosso comércio bilateral. Garantidamente nem tudo serão rosas. É bem possível que Lula esteja condenado a desiludir face ao contexto internacional e interno adverso. Salazar queixava-se que na relação com o Brasil abundavam declarações de irmandade e faltavam negócios concretos. Mas nem tudo na vida são negócios. E ter um presidente brasileiro que valoriza a relação com Portugal é, evidentemente, algo a estimar. Espero que este episódio menor não tenha consequências de maior.