Jordan B. Peterson, que nos habituámos a ver como um cruzado da normalidade, um combatente anti-woke e anti-correcção política, publicou um novo livro – We Who Wrestle With God: Perceptions of the Divine.
Nós os que lutamos com Deus, começa pelo livro do Genesis, com a misteriosa luta de Jacob, no regresso a Canan (Genesis 32: 22-32). Vi a imagem dessa luta quase antes de saber ler na Bíblia ilustrada por Gustave Doré. É uma luta que, segundo o texto bíblico, dura “até ao romper da aurora”. Depois, o patriarca e pai de Israel percebe que o homem com quem luta é um Anjo e que o Anjo é o próprio Deus, pede a Sua bênção e chama ao lugar onde com Ele lutou Penuel, que quer dizer “face de Deus.”
Jacob atravessara o rio, com as duas mulheres, os onze filhos, as duas escravas e tudo o que possuía. Depois ficara sozinho e viera o tal “homem” que se pusera a lutar com ele “até ao romper da aurora”. Quando Deus se revela, muda-lhe o nome de Jacob para Israel, “porque combateste contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.”
Deus parece, assim, amar os insubmissos, os que lutam com ele e resistem. O livro de Peterson é sobre esta luta. É uma leitura da Bíblia – e dos seus episódios – à luz da experiência histórica e literária que estrutura, segundo o autor, aquilo a que chamamos “o Ocidente”. Este Deus que inquieta, que chama, que provoca, que luta com os Seus filhos, está presente nas histórias de Adão e Eva, com a queda do homem e a oscilação masculino/feminino; de Caim e Abel, símbolos dos caminhos do Mal e do Bem livremente tomados; da entrega total de Abraão; dos braços levantados de Moisés para negociar com Deus a vitória na batalha. E na dúvida de Maria, na negação de Pedro e na exigência de provas de Tomé.
Os grandes escritores cristãos também duvidam, perguntam, hesitam, debatem-se: Agostinho, pecador inveterado, pede a Deus que lhe traga a conversão plena e a mudança de vida (“Senhor, dai-me castidade e continência, mas não já”) mas que a vá adiando; os Pais da Igreja discutem incessantemente a Verdade e não se poupam a agressões na polémica; Dante condena papas ao Inferno, submetendo-os ao suplício em vida; Shakespeare, devoto da Igreja Anglicana ou cripto-católico, problematiza a sua (e nossa) procura e luta com Deus em peças únicas. Como, bem depois, o seu patrício Charles Dickens, será o grande narrador da ética evangélica sobre o Dinheiro, no retrato do avarento Ebenezer Scrooge de A Christmas Carol, que se salva pela miraculosa antevisão do castigo.
Dostoievski, com Tolstoi, o grande escritor russo do século XIX, é ortodoxo nos escritos políticos, mas luta com Deus na ficção, lugar onde a vida, feita de histórias, tende a manifestar-se em toda a sua múltipla plenitude, como nas narrativas do Antigo Testamento ou como, depois, nas parábolas de Cristo. Dostoievski vê em Dom Quixote, no cavaleiro da triste figura entalado entre o sonho e a realidade, a personagem mais cristã da literatura ocidental; e inspira-se nele e no Cristo Morto de um quadro para o seu príncipe Míchkin, o príncipe bondoso de O Idiota. E em Diário de um Escritor, faz também rasgados elogios a Dickens, considerando-o “um grande cristão” e vendo na crítica do autor de David Copperfield à sociedade vitoriana um modelo para a sua própria crítica da sociedade russa. Em Samuel Pickwick, dos Pickwick Papers, e no seu sentido de justiça e equidade, Dostoievski percebe um Dom Quixote com sentido de humor.
Balzac é outro crente insubmisso ou capaz de viver e encarnar de forma única a mensagem cristã. Em Le Médecin de campagne, um romance que teve uma história editorial complexa e que coincidiu com um momento pessoal de tentação política, o escritor francês expõe o seu pensamento sobre quase todo o divino e o humano, conseguindo combinar sem complexos a filosofia da contra-revolução com a nostalgia de Napoleão. Sendo, politicamente, legitimista – ou seja, “ultra-reaccionário” – Balzac era também, socialmente, “progressista”; até porque vivera a revolução de Julho e a primeira industrialização, com as suas muitas vítimas urbanas. Em Le Médecin de campagne, a figura modelar do docteur Benassis, o médico vindo de família abastada que vai para uma aldeia da Sabóia para se ocupar do próximo, é uma figura cristã.
Todos estes autores lutam nas suas obras com Deus, com Cristo. E, à semelhança de Jacob, também todos percebem, ao raiar da manhã, com quem estão, afinal, a lutar e se reconciliam.
Todos ou quase todos. Porque são alguns, e por vezes insuspeitos, os lutadores que se empenham numa guerra aberta com o Criador sem que nunca, aparentemente, se rendam ou reconciliem. Um dos mais empenhados é talvez Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), marquês de Sade, ateu militante e leitor dos materialistas La Mettrie e Holbach, com toda uma vida dedicada a bramir a sua revolta contra Deus por atalhos particularmente sacrílegos. Como escreveu alguém, o ateísmo de Sade, sendo obsessivamente blasfemo e anti-cristão, faz do marquês “uma espécie de anti-ateu”, porque “nunca um ateu falou tanto de Deus como ele”.
Nietzsche é outro destes notórios batalhadores. “Deus está morto. Deus continua morto e fomos nós que O matámos”, escreve em 1882, na Gaia Ciência. Quem assim fala é “o Louco”, perante uma audiência de descrentes que se ri dele por andar à procura de Deus. Mas Nietzsche não considera a morte de Deus um evento risível, menor ou trivial, como os ilustrados, precisamente por se tratar de uma “morte” que atira o Homem para o niilismo ou para um mundo de infinitas crenças e licenças. O autor de A Genealogia da Moral já passara então os entusiasmos cientistas e olhava com cepticismo a usurpação da Ciência do pedestal da Religião, querendo impor-se como forma paralela de ilusão, através da troca de uma verdade transcendente por uma “verdade objectiva”.
Em Nós os que Lutamos com Deus, Peterson radica na Bíblia e na narrativa bíblica toda esta milenar procura, luta, resistência, adesão ou até negação, vendo aí o que estrutura “as nossas almas e as nossas sociedades” em direcção a um “sentido moral” capaz de congregar o mundo.
Uma boa leitura para recebermos este ano o Deus que, inesperadamente, todos os anos nasce para todos e para cada um de nós.
Um Santo Natal.