1Não é claro qual será a resolução para a guerra iniciada pelo regime Russo na Ucrânia. O mais desejável seria uma substituição do regime de Putin por um regime democrático, ou, pelo menos, mais liberal, que voluntariamente se retirasse do território ucraniano, pondo fim às hostilidades. Claro que tal cenário ideal nos parece a todos, e infelizmente, muito improvável. É possível que a guerra se prolongue, que se agrave ou que evolua para uma guerra de atrito. Ninguém consegue, de momento, prever qual será o desfecho. Todos gostaríamos que a violência, a carnificina e as desastrosas consequências humanitárias cessassem. Mas, quem sugere repetidamente a necessidade de “negociações pela paz”, um eufemismo que vários na extrema-esquerda gostam de utilizar, nunca especifica a resposta a três perguntas concretas e fundamentais. Para que a sua opinião seja minimamente séria, em vez de uma hipocrisia semântica, é indispensável que respondam a estas questões.

Primeiro, que condições territoriais e demográficas consideram que a Ucrânia deve aceitar? Deve abdicar de Donetsk, Kherson, Luhansk, Zaporizhzhia e da Crimeia? Deve aceitar dividir Kiev a meio como em tempos de dividiu Berlim? E se se realizarem referendos livres observados internacionalmente e as populações dessas regiões votarem contra, o que acontece? Na transferência territorial, serão permitidas transferências de populações em massa, tal como aconteceu com as populações germânicas no final da Segunda Guerra Mundial ou na partição da Índia e do Paquistão? Será permitido a todos os habitantes da região deslocarem-se livremente para o restante território ucraniano, caso o desejem? Quem sugere uma “paz fria” e se autoproclama neutral, em busca por uma solução negociada, tem de ir para lá de eufemismos e especificar as condições exactas que acha aceitáveis, sem hipocrisias.

Segundo, como pretendem assegurar à população ucraniana das regiões anexadas, à população ucraniana de outras regiões, e a todas as populações de outros países independentes da região a sua sobrevivência? Caso o tal acordo negociado viesse a ser alcançado, concedendo a Putin partes do território ucraniano, nada nos garante que este regime não tentasse, no dia seguinte ao fim da guerra, massacrar e recolonizar a região, como forma de vingança. Mais, na verdade, caso o tal acordo de transferência territorial da Ucrânia para a Rússia viesse a ser concretizado, isso seria na verdade um incentivo para que Putin viesse a repetir todo o modus operandi desta invasão com outras regiões da zona. Seria a admissão de que compensa invadir e iniciar uma guerra atroz, porque no final receberá algo em troca. Quais seriam as garantias que Putin não continuasse o seu expansionismo territorial e político, utilizando para isso todos os seus métodos habituais?

Terceiro, em que situações, de forma geral, acham que se deve abdicar dos princípios da integridade territorial das nações e da sua autodeterminação em nome da paz? Se neste caso em concreto não devemos utilizar estes princípios de forma rígida, mas sim flexibilizá-los em nome da paz, em que mais situações consideram que tal também seria aceitável? Sempre que um regime iniciar uma violenta invasão e uma guerra de dimensões humanitárias atrozes, devemos flexibilizar os princípios para acalmar o invasor e comprar a paz? Ou apenas quando o regime invasor é uma grande potência militar ou territorial? Não é isto aceitar o desenrolar de uma nova colonização do mundo e a inevitabilidade da expansão imperial dos mais fortes? E, a todos os esquerdistas que rejeitam tomar lados nesta guerra e apenas querem uma solução negociada pela paz, pergunto: se aplicassem exactamente o mesmo raciocínio que agora usam, nos anos 50 e 60, não teria isso determinado o fim muito antecipado e o insucesso de todas as guerras de independência colonial, a favor de uma negociação pacífica que permitisse a continuação dos impérios europeus?

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2Na verdade, é essa também a falácia do argumento das esferas de influência, segundo o qual os grandes poderes têm direito a uma esfera de influência na sua região, onde podem controlar a política, a vida e até a existência dos países à sua volta, independentemente da vontade dos próprios locais. Quem defende esta doutrina, deve assumir que está a abdicar da autodeterminação política das populações quando tal vai contra os interesses de certos países, especialmente se estes forem “poderosos”. Em que é que isso difere de uma nova legitimação e renomeação do imperialismo e colonialismo tradicionais?

3O chamado Ocidente, expressão que não me apraz, não está isolado, como muitos gostam de afirmar. O chamado Sul Global (termo que também não me parece correcto), ao contrário do que é argumentado, não está unilateralmente ao lado da Federação Russa. Na verdade, a maioria dos países do Sul Global condenou, com o seu voto, na assembleia das Nações Unidas, repetidamente, as acções do regime de Putin. A 2 de Março de 2022, na assembleia geral das Nações Unidas, 141 países independentes votaram a favor da retirada completa das forças russas do território ucraniano e condenaram a invasão. A maioria dos países do Sul Global votou pela retirada. A 12 de Outubro de 2022, na mesma assembleia, 143 países votaram pelo não-reconhecimento dos “referendos” independentistas nas regiões reivindicadas pela Rússia. A maioria dos países do Sul Global votou pelo não-reconhecimento. Há três dias, a 6 de Junho de 2023, na eleição mais recente para os novos membros rotativos do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a Eslovénia recebeu 153 votos contra 38 da Bielorrússia para se tornar o representante do grupo do Leste da Europa no Conselho de Segurança. Note-se que a maioria dos Estados concorre sem opositores e que estava prevista a eleição da Bielorrússia desde 2007 para este lugar. A Eslovénia só entrou na corrida em 2021, depois dos actos de repressão violenta do regime de Lukashenko. A maioria dos países do Sul Global votou contra a Bielorrússia, um dos maiores aliados russos. Porquê?

Talvez porque a maioria dos países, ao contrário dos intelectuais e políticos de extrema-esquerda, não se move por um antiamericanismo primário. A maioria desses países, como a maioria dos países de qualquer hemisfério, sabe que está em causa algo bem mais sério do que isso. Está em causa defender os dois grandes princípios sobre os quais todos os países, incluindo os mais pequenos, os mais pobres, os mais fracos do ponto de vista militar ou os do Sul Global, podem receber garantias acerca da sua própria existência: a integridade territorial das fronteiras existentes e a autodeterminação das populações. A invasão russa viola flagrantemente ambos os princípios. Apenas quem tem algo muito valioso a ganhar (do ponto de vista económico ou militar), quem tem simpatias ideológicas ou laços próximos com Putin, ou quem deseja ignorar e enfraquecer a estabilidade desses princípios porque deles não precisa e tem as suas próprias ambições territoriais (ou étnicas) de dominação, se pode dar ao luxo de votar contra.

4Aqueles países do “Sul Global”, como a Índia, o Brasil ou a África do Sul, que apoiam o regime russo, e até o seu esforço de guerra, têm as suas razões e o seu direito soberano de o fazer. No entanto, tal apoio não constitui nenhuma prova moral da sua posição e da inferioridade moral da posição da União Europeia, da NATO ou dos Estados Unidos. Noto que muitos militantes e intelectuais da área política mais à esquerda utilizam a justificação de que certa posição ou ideia é avançada pelo “Sul Global” como prova automática da sua superioridade. Na verdade, isso é de uma tristeza e condescendência aflitivas. Nas palavras tão acertadas de Janan Ganesh, os países menos desenvolvidos têm agência própria, incluindo o poder de estar errados”. Na verdade, atribuir um estatuto moral inato e superior a certos países, porque no passado foram colonizados, e manter esse estatuto, décadas e décadas mais tarde, independentemente das suas escolhas, acções e posições livres é de um paternalismo atroz.

5Ao contrário daquilo que é argumentado por quem defende que certas regiões ucranianas são, na verdade, culturalmente russas e, portanto, deveriam ser parte do território russo, não há determinismos étnicos, linguísticos ou religiosos na divisão do mundo em Estados soberanos e independentes. Por um lado, isso seria negar a existência de estados multiculturais e multiétnicos, a favor da reorganização do mundo em peças separadas e estanques onde cada etnia teria o seu lugar apenas dentro de certas fronteiras. Por outro lado, isso é negar a construção social e política das nações, a favor de uma visão essencialista e estática do seu significado. Pelo contrário, as identificações nacionais constroem-se, esvanecem-se, substituem-se e reconstroem-se ao longo do tempo, em projectos políticos e culturais variados. Em 1991, a maioria da população ucraniana votou livremente para fazer parte de um Estado-nação independente da Rússia. Na verdade, esta legitimidade democrática da nação ucraniana é relativamente rara, num mundo onde a maioria das populações não teve a mesma oportunidade de se autodeterminar em eleições livres. Desde então, a identidade e a existência da nação ucraniana evoluíram e continuam a evoluir. Na verdade, a Ucrânia é, desde o início do século, considerada um exemplo claro daquilo que, no jargão, se chama um state-nation em vez de um “nation-state”. Tenho pena que tantos construtivistas de esquerda abdiquem tão facilmente das suas visões sobre a construção social das nações e do nacionalismo.

6Se, no plano internacional, as posições de todos os Estados são igualmente legítimas e soberanas, no plano ético tal não é verdade. As posições dos Estados cujos governos são democraticamente eleitos e onde essas eleições se realizam com garantias de liberdade de expressão, associação e opinião, e com integridade do progresso eleitoral, são infinitamente mais legítimas que as posições tomadas por governos autoritários e não escolhidos livremente. Estes últimos podem ser legalmente “representantes” dos seus países no plano internacional, mas não o são em nenhuma acepção correcta do termo. Não representam coisa nenhuma porque, na verdade, não sabemos se as suas posições correspondem às posições da maioria da população no seu território. São, na verdade, estados onde a autodeterminação política das suas populações ainda não foi alcançada. Nenhum comentário ou análise pode ignorar isso.