Desta feita, com um programa infantil na RTP2. Fiquei perplexo. Alguém ainda vê a RTP2? Uma criança, ainda para mais? A única hipótese de a minha filha ver a RTP2 é a televisão estar na RTP1 e ela querer mudar de canal usando a setinha para avançar. Depois, é necessário que o telecomando fique sem pilha após andar uma vez, estacionando na RTP2 onde está a dar a programação infantil. Uma improvável conjugação de factores.
O tipo de gente que protesta com programas na RTP2 tem capacidade financeira para os filhos nunca terem tido de recorrer à RTP2. Com o Canal Panda, o Nickelodeon, o Cartoon Network, o Dinsey, o JimJam, mais os canais de streaming e o Youtube, é preciso ter muita vontade de se ofender para desencantar um programa da RTP2 com que embirrar.
O que se passou foi o seguinte: depois de, há 15 dias, a HBO ter retirado o “E Tudo o Vento Levou”, para gáudio de fanáticos que se ofendem com filmes e acham que as outras pessoas – mesmo as que não se ofendem com cinema – não o devem poder ver, na semana passada foi a vez da RTP retirar um episódio da série infantil “Destemidas”, para gáudio de fanáticos que se ofendem com desenhos animados e acham que as outras pessoas – mesmo as que não se ofendem com bonecos – não o devem poder mostrar aos filhos.
Curiosamente, são fanáticos que alternam no gáudio. Quando uns rejubilaram com a primeira censura, os outros arreliaram-se. Depois, na segunda censura, trocaram de posição e arreliaram-se os que antes tinham rejubilado. Apesar desta aparente divergência, não há dúvida que o fanatismo é o mesmo. É um fanatismo que consiste em: a) achar que há conteúdos ofensivos que não devem estar acessíveis a todos; b) achar que devem ser eles a decidir quais são. Numa semana manifestam-se uns contra o racismo no “E Tudo o Vento Levou”, na semana seguinte manifestam-se os outros contra a homossexualidade e o aborto no episódio sobre Thérèse Clerc.
Podem defender ortodoxias diferentes, mas a intolerância que dedicam a quem não pensa como eles é exactamente a mesma. Radica na crença de que há conteúdos perigosos que podem levar as pessoas a terem comportamentos intoleráveis, logo, não devem ser vistos ou só podem estar acessíveis em condições controladas.
Entretanto, a HBO vai repor o filme com um enquadramento histórico e a RTP repôs o episódio online, mas não na plataforma infantil ZigZag. São capitulações para aplacar os fanáticos, mas não vão servir de muito. É só esperar mais uns dias até que eles se ofendam com outro conteúdo qualquer que atinja um dos seus temas sagrados, para voltarem a exigir retiradas. Deve ser muito cansativo ver televisão com pessoas destas.
A reposição da série “Destemidas” permitiu-me ver o episódio em questão. Confesso que fui surpreendido pela capacidade de persuasão daqueles desenhos animados. Depois de assistir aos 3 minutos e 25 segundos em que a vida de Thérèse Clerc é condensada, apeteceu-me logo fazer amor com a minha mulher e engravidá-la para ela poder fazer um aborto. Infelizmente, a minha mulher também tinha visto o episódio, que a convenceu a tornar-se lésbica, cancelando a empreitada na origem. Fomos enfeitiçados pelo programa, tal qual me tinha acontecido da última vez que vira o “E Tudo o Vento Levou” e fui à Cova da Moura procurar negros que pudesse adquirir para a plantação de tabaco que já apalavrara no OLX. Estou a brincar, é pilhéria. Da última vez que vi o “E Tudo o Vento Levou” não tinha dinheiro para me lançar num projecto destes.
Mas vi, de facto, o episódio da “Destemidas” sobre Thérèse Clerc, o que me permitiu formar uma opinião sobre o programa e sobre se é apropriado estar ou não na RTP2. E a minha opinião é: a minha opinião não interessa.