Novembro é o décimo primeiro mês do ano civil do calendário comum e simultaneamente o último mês do calendário litúrgico da Igreja Católica. Último, porque significa não só o fim do ciclo anual da liturgia (no penúltimo domingo deste mês, com a solenidade de Cristo, Rei do Universo e depois com o início do Advento), mas sobretudo porque muitas das leituras bíblicas escolhidas apontam para a meta final, ou seja, para as últimas realidades da existência cristã.

É por isso que já no primeiro dia deste último mês, a Igreja nos recorda, honra e pede a intercessão de todos aqueles que atingiram, logo após a morte, a beatitude na perfeição da semelhança divina (todos os santos, oficialmente canonizados ou não); e logo depois, no dia 2, exercendo uma das maiores obras de misericórdia, reza em sufrágio pela alma daqueles que ainda carecem de purificação para atingirem tal fim. E ao longo de todo o mês de Novembro diversas leituras bíblicas das Missas, remetem para as realidades que cremos nos esperam após a morte: o juízo divino e a consequente vida eterna de salvação ou condenação da alma imortal e ainda para a ressurreição dos nossos corpos para a incorruptibilidade.

Quanto às antigas festividades pagãs do chamado Halloween ou à sua versão comercial importada dos Estados Unidos da América, na véspera do dia 1, não desdenham elas evocar temerariamente a morte, nem entidades míticas ou naturais, tais como o ritmo das estações do ano, as colheitas agrícolas, fantasmas, espíritos que vagueiam, almas danadas, bruxas, partidas, jogos de adivinhação ou até mesmo demónios, como nos revela um interessante artigo reeditado recentemente pelo Observador. Novembro é assim o mês que traz à memória a derradeira e absolutamente certa realidade a que nenhum de nós escapará: a morte.

No entanto, esta recordação não deve ser uma simples brincadeira de crianças ou adolescentes mais ou menos divertidos; ao contrário, deve servir para nos fazer pensar muito seriamente no modo como encaramos a vida e o seu sentido último e o quanto somos livremente responsáveis na sua condução e destino final.

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Mas, conforme escreveu um reputado teólogo, “antes da Revelação e da Redenção realizada por Cristo, os seres humanos sempre intuíram que deve haver uma vida no além depois da morte; contudo, dela não conheciam nada. Jesus Cristo foi o primeiro a revelar aos seres humanos as realidades escondidas da outra vida: ‘Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem’ (Jo 3, 13). Uma vez que a Palavra viu o Céu, do qual desceu na Incarnação, Ela pode falar acerca do que conhece”. (Mauro Gagliardi, Truth Is A Synthesis – catholic dogmatic theology, Emmaus Academic, Steubenville, Ohio, 2020, p. 866; tradução minha).

De facto, para a fé católica e apostólica, o mistério da morte humana e do que nos espera para além dela, só se esclarece na mensagem, vida, paixão, morte, ressurreição e ascensão ao Céu da Pessoa de Jesus Cristo, que é a Palavra ou Verbo de Deus que encarnou e assumiu a nossa humanidade. Não estamos fatalmente destinados ao aniquilamento total, ao nada: “creio na vida eterna” e “espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir” são afirmações indefectíveis da fé católica e apostólica. Com efeito, afirma o Catecismo da Igreja Católica (CIC): “Crer na ressurreição dos mortos foi, desde o princípio, um elemento essencial da fé cristã. ‘A ressurreição dos mortos é a fé dos cristãos: é por crer nela que somos cristãos’ (Tertuliano)” (CIC n. 991). O que aconteceu com Cristo foi o começo, as primícias, do que cremos ocorrerá com todos os seres humanos. Todos estamos destinados a ressuscitar: “Os que tiverem praticado o bem, para uma ressurreição de vida e os que tiverem praticado o mal, para uma ressurreição de condenação [ou julgamento]” (Jo 5, 29).

A doutrina católica designa as realidades finais por “novíssimos do homem”, no sentido de fim último do homem, e porventura também porque, relativamente às realidades conhecidas ao jeito da existência neste mundo, aquelas realidades, por enquanto, apenas podem ser conhecidas pela fé. Se aquela designação caiu algo em desuso, a doutrina sobre as realidades a que respeita, contudo, permanece obviamente a mesma.

Quais são então essas realidades incluídas nos “novíssimos”? O Compêndio do CIC, elenca quatro: a Morte, o Juízo, o Inferno e o Paraíso (ou Céu). Embora nos tempos que correm seja uma raridade os Pastores de almas abordarem este tema – não sei se por medo de ferir sensibilidades ou acharem actualmente pouco pastoral ou até pela escola teológica que frequentaram – devemos aproveitar esta oportunidade do calendário anual para, ao menos uma vez ao ano, tomarmos em consideração o que nos espera no fim da vida.

  1. A morte significa o fim da vida terrena tal como a conhecemos na realidade da nossa carne corruptível. Enquanto experiência subjectiva é absolutamente intransmissível e, por isso, necessariamente misteriosa e pavorosamente solitária. Apenas podemos testemunhá-la e acompanhá-la de fora. A morte leva à dissolução da existência biológica do nosso corpo, à corrupção do nosso corpo, em rigor do nosso cadáver, num crescendo de entropia; ao fim da nossa existência enquanto organismo (organizado, passe o pleonasmo); ao desaparecimento irreversível neste mundo, da nossa personalidade; enfim, agora numa linguagem teológica, à separação da nossa alma do corpo – ou seja à separação do corpo daquilo que em nós é irredutível à matéria biológica e nos constitui como um eu.

Alma espiritual essa, que é princípio anímico do corpo e que subsiste após a morte. Com efeito, uma curiosa Carta da anterior Congregação da Doutrina da Fé a todos os bispos, de 17 de Março de 1979, sobre o “que acontece entre a morte do cristão e a ressurreição universal”, lembra no seu nº 3: “A Igreja afirma a continuação e a subsistência, depois da morte, de um elemento espiritual dotado de consciência e vontade, de modo a existir no tempo intermédio o próprio ‘eu humano’, carecendo, porém, do complemento do corpo. Para designar este elemento, a Igreja emprega o termo ‘alma’, consagrado pelo uso da Sagrada Escritura e da Tradição” (cf. Denzinger – Hünerman, n. 4653).

Na perspectiva antropológica cristã, há só uma vida no tempo terrestre; e como “é um facto que os homens devem morrer uma só vez” (Heb 9, 27), não existe, para cada humano, mais do que uma vida neste mundo, ou seja reencarnação alguma depois da morte, o que torna a nossa responsabilidade mais premente. Logo depois da morte, ocorre o juízo particular.

  1. O juízo, abrange dois tempos, digamos assim: aquele que Cristo realiza imediatamente após a morte de cada um de nós, em particular, pelo qual seremos logo retribuídos na nossa alma, em relação à nossa fé e às nossas obras, com o Paraíso, ainda que tenhamos eventualmente que sofrer de uma purificação; ou então com o Inferno (cf. Compêndio n. 207). E um dia, “que só Deus conhece” qual, teremos o juízo final (ou universal) perante todos, por ocasião da ressurreição dos corpos, aquando do regresso de Cristo glorioso, no qual Jesus ratificará o destino que cada um viverá então na inteireza do seu corpo e alma reunificados (cf. Compêndio nn. 214-215). Assim, após o juízo, deparamo-nos fundamentalmente com dois destinos ou metas absolutamente irreversíveis e incomunicáveis entre si: ou o Céu ou o Inferno. Quanto às almas daqueles merecedores do Céu, como referi, pode ocorrer que ainda antes tenham que sofrer transitoriamente a purificação de algo que os impede da visão de Deus, da comunhão plena da vida divina – é o estado transitório que a doutrina designa de Purgatório (cf. Compêndio n. 210).
  1. O Céu é o “estado de felicidade suprema e definitiva”, em que viveremos numa comunhão com Deus e todos os santos, no qual, finalmente, será possível ver Deus “face a face” (1 Cor 13,12) (cf. Compêndio n. 209).
  1. O Inferno, tal como refere o Compêndio no número 212, “consiste na condenação eterna daqueles que, por escolha livre, morrem em pecado mortal [ver Compêndio nn. 394-395]. A pena principal do inferno é a eterna separação de Deus, o único em quem o homem encontra a vida e a felicidade para que foi criado, e a que aspira. Cristo exprime esta realidade com as palavras: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno’ (Mt 25, 41)”.

Consola-nos a certeza de que Deus quer a salvação de todos – “Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2, 3-4) – o que, contrariamente ao que é hoje muito frequente ouvir-se pregar nas homilias das Missas exequiais, não quer dizer que todos os cristãos que morrem estejam já efectivamente salvos. É preciso que o defunto se tenha predisposto devidamente a tal, livremente, ainda em vida, durante a única vida que temos! De facto, como atesta São Pedro, ao referir-se à paciência de Deus connosco, “o Senhor […] não quer que ninguém se perca, mas que todos venham a converter-se” (cf. 2 Pd 3, 9). Como nos diz o n. 2092 do CIC, ao especificar o pecado da presunção, “há duas espécies de presunção: o homem ou presume das suas capacidades (esperando poder salvar-se sem a ajuda do Alto), ou presume da omnipotência ou misericórdia divinas (esperando obter o perdão sem se converter, e a glória sem a merecer)”.

Deus jamais atenta contra a nossa liberdade. Efectivamente, penso que tão dilacerante como a morte, também é o agir da liberdade nas decisões fundamentais e definidoras: escolher, em plena consciência, é difícil. Formar a consciência rectamente, numa época de confusão doutrinal instituída e de relativismo moral e religioso, não está fácil. Mas, de algum modo, essa formação está sempre ao alcance de todos nós. Há meios credíveis para tal e há caminhos de salvação que só Deus conhece…

Então aproveitemos estas semanas de Novembro e trabalhemos para que, no que de cada um depende enquanto sujeito livre, atinjamos o fim/finalidade a que Deus Criador nos chama: uma vida divina, eterna e bem-aventurada com Ele, já que, se quisermos, “seremos semelhantes a Deus, porque O veremos tal como Ele é” (1 Jo 3, 1-3).

Nota – a edição em português do Compêndio do CIC, pode aceder-se aqui: Catecismo da Igreja Católica – Compêndio (vatican.va)

2 de Novembro, Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos