Amplamente analisado por profissionais do comentário, o palco da actualidade deixa espaço a outras visões sobre o massacre do povo Ucraniano. As palavras não conseguem descrever com exatidão o que se sente face a este dramático sofrimento, acréscimo de pesar a outras tragédias humanas, um presente com reminiscências do passado em igual barbárie, a mando de uma figura com índole de Calígula, sedenta de império e que temos dificuldade em situar no âmbito da psicopatologia. Assistimos aos caprichos de um carácter narcísico, isento de culpa e piedade, indiferente à morte, ávido de imortalidade histórica — ao lado de Ivã, o Terrível, ficará certamente Putin, o Bárbaro.

O mundo vergado à prepotência assiste até onde pode ir a crueldade e o quanto são infrutíferos lamentos, apelos à paz, e esforços mundiais de mediação com esta criatura abjecta que senta os seus mandatários à mesa diplomática como se quisesse a paz. Ora bem sabemos como a mediatização alimenta a megalomania e o narcisismo, e como são contraproducentes os diálogos com a loucura.

As análises Geopolíticas dos especialistas não respondem às dúvidas do cidadão comum como nós, que, atentos e preocupados, vemos o Ocidente sem estratégia, entendida como a capacidade de antecipar uma necessidade, uma vez que o fantasma da invasão Russa paira já sobre a Europa há décadas. Faltou trabalho de ordenamento preventivo por parte do mundo, dito civilizado, demasiado convencional, crente no natural cumprimento da carta dos direitos humanos, sem ter levado a cabo esforços efectivos de cooperação e criação de códigos de conduta firmes, que contenham o comportamento tresloucado de líderes contaminados pelo poder patológico.

Ao contrário de crises humanitárias activas em outras latitudes, no caso da Ucrânia a coesão mundial chegou, embora tarde e insuficiente. As medidas implementadas levarão eventualmente o invasor à pobreza e ao cansaço pelo isolamento, mas a que custo? A “família ocidental” depara-se com a incógnita do amanhã e testemunha a escalada da destruição e do sangue na redefinição do Mapa no Leste. O extermínio continuado arrisca a fazer da morte um número frio, estatístico, que perde significado a cada cadáver abandonado na atrocidade da vala comum.

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As organizações mundiais, tem muito trabalho a fazer em termos de desenvolvimento moral, para que a vida humana seja efectivamente o mais alto valor aplicável aos membros de todas as “famílias”, propósito talvez possível num futuro distante. Entretanto, a solidariedade do pão e teto precário fornecidos aos refugiados como recursos de sobrevivência, são sempre tristeza e humilhação de quem é espoliado dos seus bens, do seu equilíbrio, dos seus sonhos, porque falhou a Civilização.

Inquieta-nos também a Rússia martirizada por déspotas há séculos, vítima das chagas do totalitarismo em convulsões internas e externas. Povo estoico, dotado de genialidade na arte, na ciência, no desporto, intelectuais e outros valores que têm subsistido ao fundamentalismo político, à disciplina militarista e à lavagem cerebral das massas que sustentam as elites corruptas coadjuvantes do poder. Parece-nos despropositada a generalização do termo “russofobia”, quando falamos de um povo de extraordinário valor, vítima do medo, da repressão, que vê agora o regresso da “cortina de ferro” totalmente opaca ao genocídio do povo irmão.

O passado mostra que um império pode colapsar por dentro como ocorreu na época de Nicolau II na queda do Czarismo. Talvez só o desespero acorde novamente o povo Russo para a liberdade, contributo essencial para a paz. Como referiu Étienne de La Boétie (1530-1563) no Discours de la Servitude Volontaire (1577), “é o povo que se escraviza, que se decapita que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios.”

Escolhemos este duro juízo como provocação terapêutica, ofensivo que é da liberdade democrática, e temos noção do seu carácter inocente. Contudo, cinco séculos depois, parece-nos valioso tanto por mover o soldado no cumprimento cego de ordem para matar, como pela presença da mesma racionalidade no paradoxo elementar da Democracia que tanto prezamos. O regime da liberdade não é isento de formas de poder tácito que torna fácil a persistência de novos servos a velhos senhores. Não obstante vivermos num estado de direito, até onde vai a nossa auto-determinação? Que informação, contra-informação e especialmente que emoção conforma a escolha do cidadão, no momento de sufrágio dos nossos governos?

A democracia, é um regime político que vive essencialmente do Marketing que nos convence a votar num só “Rei” a favor da estabilidade governativa. Subsiste, porém, o perigo da concentração do poder num partido político, que, na prática, passa pelo crivo de um homem. Facilmente encontramos sentido nas palavras do autor referido; “… não há infelicidade maior do que estar sujeito a um chefe; nunca se pode confiar na bondade dele e só dele depende o ser mau quando assim lhe aprouver.”

Defensores do zelo permanente da qualidade da Democracia, retiramos lições da dinâmica política e percebemos que há uma quota-parte de autocracia no seu ADN. O principal know-how democrático é criar a ilusão a cada pessoa que é dona de si e, por isso, acreditamos que é fácil ver o mundo com os nossos olhos… talvez não. Quando nos sentirmos livres vejamos como nos cercam de perto os tormentos da ditadura, e tenhamos noção de que somos livres para ser servos. Entre o caos e a coerência de uma sociedade há um espaço imenso de servidão voluntária, a mãe de todas as guerras.