Na reunião da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias do passado dia 8 de Maio, foi discutido e votado um Projeto de Voto de Saudação à decisão do Parlamento Europeu em defesa da inclusão do direito ao aborto na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (Projeto nº 5/XVI/1ª) apresentado pelo BE, com o seguinte teor:

“O acesso ao aborto legal, seguro e gratuito tem mobilizado as mulheres em todo o mundo. Em Portugal, a consagração do acesso legal à interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher demorou várias décadas e dois referendos para ser alcançada. Este avanço nos direitos das mulheres, com a aprovação da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, é hoje assumido como um marco de progresso do país.
Perante os retrocessos em matéria de direitos sexuais e reprodutivos e o aumento das restrições ao aborto em vários países, no dia 11 de abril de 2024, o Parlamento Europeu aprovou a Resolução sobre a inclusão do direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
A proposta do Parlamento Europeu insta o Conselho Europeu a dar início a uma Convenção para a revisão dos Tratados, de forma a inscrever no Artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais o seguinte direito: “Todas as pessoas têm direito à autonomia sobre o corpo, ao acesso gratuito, informado, pleno e universal à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, e a todos os serviços de saúde conexos, sem discriminação, incluindo o acesso a um aborto seguro e legal.
A decisão do Parlamento Europeu é um passo fundamental para a defesa da liberdade, da igualdade, da justiça e da saúde sexual e reprodutiva em toda a União Europeia.
Assim, a Assembleia da República, reunida em sessão plenária, saúda a Decisão do Parlamento Europeu em defesa da inclusão do direito ao aborto na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais da União Europeia”.

Segundo foi noticiado, o referido voto de saudação foi chumbado com os votos contra do PSD e do Chega (presumo que também do CDS, a não ser que não estivesse presente), tendo todos os restantes partidos votado a favor.

Os portugueses ficaram, assim, a saber que, para além do PS, BE, PCP e PAN (cujos eurodeputados já tinham votado a favor), também o L e a IL são a favor da Resolução do PE que sobre esta matéria foi aprovada no dia 11.04.2024 (com 336 votos a favor, 163 contra e 39 abstenções).

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Não pretendo, no presente artigo, criticar o entusiasmo demonstrado nesse voto de saudação com a proposta de (tentar) elevar o “direito ao aborto” a um “direito europeu fundamental”, nem enunciar as razões por que entendo que o aborto não constitui um avanço nos direitos das mulheres, um marco de progresso do país, um direito sexual e reprodutivo e/ou um passo fundamental para a defesa da liberdade, da igualdade, da justiça e da saúde sexual e reprodutiva em toda a União Europeia.

Não pretendo igualmente lamentar que uma expressiva maioria dos eurodeputados do PE tenha votado a favor da tal Resolução, nem demonstrar por que entendo que a mesma acarreta uma violação e um desrespeito dos princípios da subsidiariedade e da complementaridade em matéria de política da Saúde da UE, pondo em causa a soberania e autonomia dos Estados-Membros nesta matéria.

Também não pretendo justificar a contradição insanável que seria incluir um “direito ao aborto” na Carta dos Direitos Fundamentais da UE, cujo âmbito de aplicação é restrito ao âmbito de aplicação do direito da União Europeia, atendendo não só aos pressupostos e princípios em que a mesma assenta, como a vários dos direitos nela consagrados, muito em particular, a dignidade do ser humano e a sua inviolabilidade, o direito à vida e o direito à integridade do ser humano. Sim, porque o aborto acarreta o fim de uma vida humana, ainda que seja uma vida intra-uterina.

Por último, não pretendo também explicar a gravidade das implicações e consequências jurídicas que teria o reconhecimento do “direito ao aborto” como um “direito europeu fundamental”, nomeadamente em termos da limitação que isso acarretaria ao poder dos Estados-Membros em imporem restrições, necessariamente sob a forma de lei, ao exercício de tal “direito”.

Aquilo que pretendo é chamar a atenção para o conteúdo da Resolução do PE que tal voto pretendia saudar, uma vez que esse conteúdo foi, e vai, muito para além da inclusão do “direito ao aborto” na Carta dos Direitos Fundamentais da UE.

Nesta Resolução do PE, pretende-se, de uma forma que considero ilícita, ilegal e abusiva: por um lado, interferir nas políticas de financiamento da UE, discriminando negativamente os grupos e associações pró-vida e discriminando positivamente os grupos e associações pró-aborto (considerados os “defensores dos direitos humanos no domínio da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos”); por outro lado, restringir competências e poderes que são próprios dos Estados-Membros; e, por outro lado, ainda, eliminar direitos, liberdades e garantias dos seus cidadãos, nomeadamente dos profissionais de saúde. Senão vejamos.

Ao contrário do que parece resultar do dito voto de saudação, o PE não se limitou, na referida Resolução (no seu ponto 3.), a instar o Conselho Europeu a dar início a uma Convenção para a revisão dos Tratados, de forma a alterar o actual artigo 3º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE e a incluir no mesmo o “direito ao aborto” para todas as pessoas (direito esse que a ser, diga-se de passagem, sempre seria só das mulheres e não de todas as pessoas).

O PE foi muito para além disso, até porque os eurodeputados bem sabem que, neste momento, tal propósito é um nado-morto à nascença, pois a alteração dos Tratados exige o voto unânime dos Estados-Membros e essa unanimidade não existe nesta matéria.

A gravidade do teor desta Resolução do PE reside, assim, também, em vários dos seus outros pontos decisórios, dos quais transcrevo, citando, apenas alguns, mas faço-o sem comentar, porque entendo não ser sequer necessário:

“5.  Manifesta preocupação com o importante aumento do financiamento a favor de grupos antigénero e antiescolha no mundo, inclusive na UE; insta a Comissão a utilizar todos os instrumentos disponíveis para garantir que as organizações que atuam contra a igualdade de género e os direitos das mulheres, notadamente os direitos reprodutivos, não recebam financiamento da UE;

  1. Exorta os Estados-Membros a despenalizarem totalmente o aborto, em conformidade com as orientações da OMS de 2022, e a eliminarem e combaterem os obstáculos ao aborto seguro e legal e ao acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos (…);
  1. Condena o facto de, em alguns Estados-Membros, o aborto ser negado por médicos e, em alguns casos, por instituições médicas inteiras, com base na «cláusula de consciência»; lamenta que esta cláusula seja amiúde invocada em situações em que os atrasos põem em risco a vida ou a saúde das pacientes;
  1. Exorta todos os Estados-Membros a eliminarem as restrições e os obstáculos jurídicos, financeiros, sociais e práticos ao aborto (…);
  1. (…); apela à UE e aos Estados-Membros para que assegurem e apoiem politicamente um espaço cívico favorável na UE através de uma estratégia para a sociedade civil, no intuito de velar pela proteção das mulheres e dos defensores dos direitos humanos no domínio da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos através de um mecanismo de proteção dos defensores dos direitos humanos e para que os apoiem financeiramente, em particular através do programa Cidadãos, Igualdade, Direitos e Valores (CIDV); insta os Estados-Membros a melhorarem o acesso aos serviços de cuidados de saúde sexual e reprodutiva, inclusive de aborto, através do Programa UE pela Saúde;
  1. Insta ainda a UE a agir como defensora e a fazer do reconhecimento deste direito uma prioridade fundamental nas negociações no seio das instituições internacionais e de outras instâncias multilaterais (…)”.

Como se viu, no ponto 6. da dita Resolução, o PE exortou os Estados-Membros a despenalizarem totalmente o aborto, em conformidade com as orientações da OMS de 2022, pelo que importa saber quais são essas orientações.

A OMS publicou, em Março de 2022, uma “Diretriz sobre cuidados no aborto: Resumo”, cujo objectivo é, segundo é dito, apresentar o conjunto completo de todas as recomendações e declarações de melhores práticas da OMS relacionadas com o aborto, em três áreas essenciais: legislação e política, serviços clínicos e prestação de serviços.

Refira-se que, para a OMS, “mulheres cisgénero, homens transexuais, indivíduos não binários, género fluidos e intersexuais com um sistema reprodutor feminino e capazes de engravidar podem necessitar de cuidados no aborto”. Nessa medida, para a OMS, os prestadores de serviços de SSR [serviços de saúde sexual e reprodutiva], incluindo os cuidados no aborto, devem considerar as necessidades – e prestar cuidados iguais – a todos os indivíduos; a identidade de género ou a sua expressão não devem conduzir à discriminação”.

Sem prejuízo de recomendar a leitura integral deste documento, para se perceber cabalmente a posição da OMS sobre o aborto e conhecer a totalidade das recomendações da OMS, não posso deixar de chamar a especial atenção para algumas dessas recomendações nele constantes, que, mais uma vez, me limito a citar sem comentar, porque entendo não ser necessário:

  • Criminalização: Recomendar a descriminalização total do aborto.
  • Abordagens baseadas em fundamentos: Desaconselhar leis e outras regulamentações que restrinjam o aborto por fundamentos. Recomendar que o aborto esteja disponível a pedido da mulher, da rapariga ou de outra pessoa grávida.
  • Limites da idade gestacional: Desaconselhar leis e outras regulamentações que proíbam o aborto com base nos limites da idade gestacional.
  • Períodos de espera obrigatórios: Desaconselhar períodos de espera obrigatórios para o aborto.
  • Autorização de terceiros: Recomendar que o aborto esteja disponível a pedido da mulher, rapariga ou outra pessoa grávida, sem a autorização de qualquer outro indivíduo, organismo ou instituição
  • Determinação da idade gestacional da gravidez: ecografia pré-aborto: Para o aborto farmacológico e cirúrgico: Desaconselhar a utilização de ecografias como pré-requisito para a prestação de serviços de aborto.
  • Objecção de consciência: Recomendar que o acesso e a continuidade dos cuidados completos no aborto sejam protegidos contra barreiras criadas pela objecção de consciência.

Estas são, assim, algumas das orientações e recomendações da OMS sobre o aborto que o PE exortou, e exorta, os Estados-Membros a adoptarem. Como referi acima, a Resolução do PE foi saudada pelo PS, BE, PCP, PAN, L e IL. 

Em vésperas de eleições europeias, pareceu-me importante. Mas, quem sabe, talvez esteja enganada.