O projeto de acórdão do Supremo Tribunal (ST) dos EUA — habilmente tornado público através de uma fuga de informação —, no qual se defende a alteração da jurisprudência do acórdão do caso Roe v. Wade (1973), impedindo regulações estaduais restritivas da prática do aborto, veio relançar o debate sobre a legalização do aborto.

As várias iniciativas de protesto, algumas com contornos de violência, dirigidos aos movimentos pró-vida e inclusive a alguns juízes do ST dos EUA, são sinais de coação, de uma intolerância inaceitáveis em democracia e num Estado de Direito. Nos tempos atuais, é muito difícil discutir este tema e contrariar o politicamente correto.

Comecemos pela utilização do eufemismo. Muitas pessoas não se dão conta de que a linguagem pode ser corrompida para dar um aspeto positivo a um conceito ou comportamento eticamente condenável. O uso do termo “interrupção da gravidez” transmite a ideia de que se poderia retomar o seu curso a qualquer momento, mas isso não é possível. Trata-se de uma decisão irreversível; não é uma suspensão, mas um fim. Mas, hoje em dia, a sociedade está cheia de eufemismos: “interrupção voluntária da gravidez» (em vez de aborto), “autodeterminação de género” (em vez de disforia de género), “morte assistida” (em vez de eutanásia), etc.

O principal argumento usado pelos defensores da legalização do aborto é a escolha da mulher (curiosamente nunca se fala da escolha do homem, pois também há um pai); ou seja, a liberdade. A utilização da palavra “liberdade” é uma espécie de salvo-conduto para se fazer tudo o que se quer, oferecendo suporte legislativo a uma autêntica avalanche niilista que se observa atualmente no mundo ocidental, com o beneplácito dos partidos políticos (provavelmente, no nosso país, a próxima iniciativa legislativa será a legalização da eutanásia).

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Neste caso, a estratégia política é simples e habilidosa: a liberdade é usada como um argumento absoluto. Ninguém ousa atacar a “liberdade”, caso contrário é rotulado com uma série de epítetos pouco abonatórios, “fascista”, “retrógrado”, “opressor”, etc. Aliás, este é o mesmo argumento usado para defender a eutanásia. Há quem advogue que os diferentes direitos que a pessoa tem são invioláveis, incluindo a vontade de pôr termo à sua própria vida. Todavia, nem tudo o que escolho me convém, do mesmo modo que nem tudo o que pretendo escolher é eticamente aceitável.

Os defensores da legalização do aborto consideram-no um direito; uma conquista civilizacional. O próprio Presidente francês, Emmanuel Macron, propôs que o “direito ao aborto” fosse incluído entre os direitos garantidos pela Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Contudo, não está aqui em causa apenas um direito, mas antes um conflito entre dois direitos: o direito da mãe a abortar e o direito do bebé não-nascido a viver.

Decorridos, cerca de 15 anos da legalização do aborto no nosso país, sabemos que há muitas pessoas que consideram que o embrião ou feto não é uma vida humana (pelo menos até às 10 semanas), sendo um direito da mulher poder decidir abortar.  No caso do acórdão Roe v. Wade, o aborto é admissível até fase da viabilidade do feto; ou seja, até à sua capacidade de sobrevivência fora do ventre materno, o que prolonga no tempo a possibilidade de aborto. Repare-se na fragilidade desta argumentação: mesmo “a viabilidade do recém nascido” só é garantida através de cuidados de terceiros (pela mãe, pai ou outras pessoas que os substituam). Isto significaria que, com base nesta linha de argumentação, poder-se-ia legalizar o infanticídio.

Se não se considerar que a vida começa desde o momento da conceção e que um embrião é inequivocamente um ser humano, então a valorização da vida intrauterina e a sua defesa torna-se extremamente volátil. No fundo, o início de todos os direitos e garantias, à condição de pessoa humana, acaba por ser estabelecido por critérios arbitrários que podem variar ao longo do tempo, por razões de conveniência.

Excluindo os casos de personalidades antissociais, a decisão de abortar é difícil, feita em condições trágicas e muitas vezes traumáticas. Com o tempo, podem surgir vários problemas psicológicos e psiquiátricos que justificam acompanhamento clínico. Quem disser o contrário está a falsificar a verdade dos factos, certamente que nunca ouviu relatos individuais sobre esta experiência, nem acompanhou o sofrimento destas pessoas na vida real. Para uma mulher, mesmo quando realizado num contexto legal, um aborto nunca se esquece. Defendê-lo como um direito humano é um retrocesso civilizacional, pois é negar o primeiro dos direitos fundamentais: o direito à vida.