A localização e a construção do novo aeroporto de Lisboa voltou recentemente à ordem do dia. É difícil ouvir um noticiário ou ir às redes sociais sem ouvir alguém pronunciar-se sobre a localização dum futuro aeroporto que sirva convenientemente a área metropolitana de Lisboa. Todos parecem saber qual a melhor solução para o problema, quer sejam políticos, quer sejam comentadores, que são pagos para dizer qualquer coisa sobre qualquer que seja o assunto, quer sejam os que se consideram opinion makers e influencers, quer sejam as pessoas em geral, uns sabendo pouco e outros ainda menos. O que fundamenta as suas opiniões já é menos claro ou, simplesmente, não é dito. Talvez porque não se baseie em nada de substantivo.
Pessoalmente, posso ter algumas convicções por ter estado envolvido neste processo desde finais de 2006 até 2011, mas não tenho soluções incontestáveis porque, também, já se passaram mais de dez anos. Acho, por isso, mais aconselhável definir um processo decisório que permita, nesta altura, a quem tem poder de decisão que tome as melhores decisões possíveis face à realidade que vivemos.
Comecemos, então, com um pouco de história para enquadrar o que vai ser dito. Não vou falar do período antes de 2006 pois, embora interessante do ponto de vista de compreensão global, está mais do que escalpelizado, nomeadamente, no elucidativo artigo de Ana Suspiro publicado recentemente no Observador. Só que nesse artigo, como é habitual e justificável, fala-se apenas da história pública e não do que, paralelamente, se foi passando no domínio empresarial. Os políticos esquecem-se, ou nem percebem, que quando dizem ou se comprometem publicamente com alguma coisa, a sociedade civil organiza-se e investe para responder àqueles desígnios. Se nada depois acontece, é esforço e dinheiro deitado à rua pelos privados, que assumem ingloriamente os custos e o esforço e que, geralmente, acabam por ser ignorados. É a irresponsabilidade política dos governante que falam sem medir as consequências do que dizem.
Em 2006, o governo de José Sócrates, abrilhantado pelo ministro Mário Lino, decidiu lançar um concurso para a privatização da ANA e construção do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL), a localizar na Ota. As empresas de engenharia e de construção, nacionais e internacionais, começaram a organizar-se para responder ao desafio governo. A Brisa, a Mota-Engil, como líderes, os bancos nacionais e outras empresas de construção decidiram criar o Consórcio Asterion, de que fui Presidente da Comissão Executiva e depois seu membro, sempre em representação da Brisa.
Com base num estudo patrocinado pela Confederação Empresarial de Portugal foi demonstrado que a Ota não era a melhor solução. Do meu ponto de vista, independentemente das razões aduzidas no estudo, a Ota pecava pela obrigatoriedade de ter de se construir de imediato uma solução finalizada e pela impossibilidade de expansões futuras, uma vez que o aeroporto ficava, por assim dizer, encaixado. Um outro problema era o elevado volume de movimentação de terras que, embora pouco recomendável, não era totalmente desagradável às empresas de construção.
O Campo de Tiro de Alcochete foi defendido pelo LNEC, em muitas intervenções consistentes e bem fundamentadas do seu Presidente, Carlos Matias Ramos. Isto apesar do conhecido “jamais (jamé)” referido durante uma declaração empolgada do ministro Mário Lino, após um almoço-debate com economistas, onde criticou quem defendia a solução em Alcochete por querer construir um aeroporto no deserto, sem perceber, na sua triste ignorância, que era essa uma das principais vantagens do Campo de Tiro. Também não se demitiu, nem foi demitido por causa disso, o que não deixa de ser curioso à luz dos atuais acontecimentos com o seu sucessor Pedro Santos, sobre o aeroporto.
Por razões que nunca entendi convenientemente, o governo foi protelando o lançamento do concurso quando a informação oficiosa que ia passando para o exterior era que Sócrates queria avançar mas que Mário Lino nunca mais se decidia.
Entretanto, o Consórcio Asterion fazia o seu trabalho. Contratou consultores de estratégia, bancos de investimento e advogados, todos com experiência no desenvolvimento de aeroportos por todo o mundo, mandou fazer um Plano Diretor Aeroportuário para o Campo de Tiro de Alcochete, fez os estudos de arquitetura, transportes e energia, com uma empresa americana de referência, contratualizou o envolvimento de um operador internacional, na altura o melhor do mundo, de modo a que pudesse estar devidamente preparado para quando o governo lançasse o concurso, que se esperava que acontecesse, sempre, na semana seguinte.
O Asterion avaliou internamente diversas soluções de Portela+1 e concluiu-se, nas várias opções estudadas (incluindo o Montijo), que eram soluções inviáveis e ineficazes, face à existência da possibilidade de utilizar o Campo de Tiro de Alcochete para implantar um aeroporto que poderia ser construído de forma a acompanhar a evolução do tráfego aéreo, europeu e mundial. Os custos desta construção (pistas, terminais e interface de transportes) que foram estimados para a solução de horizonte de projeto eram inferiores a metade dos valores de que agora se fala (sem incluir acessibilidades segregadas para o aeroporto). O tempo de realização das obras situava-se à volta de cinco anos.
Convém também referir que a ideia subjacente a este projeto era que o NAL se constituísse como um Hub da TAP, potenciando as ligações com a América do Sul e África, razão pela qual o Asterion negociou um contrato com Changi, operador aeroportuário de Singapura, para apoio à ANA na operação do futuro aeroporto. Desta forma garantia-se, também, uma independência em relação aos operadores europeus, com quem uma aliança estratégica não parecia benéfica do ponto de vista de desenvolvimento e sustentabilidade da ANA.
Um dos aspetos digno de realce é que capacidade de investimento parecia não faltar. Muitos dos operadores aeroportuários com quem se negociou pretendiam ter um envolvimento financeiro significativo, chegando aos 50% do investimento. Alguns desistiram quando o Asterion não lhes abriu essa possibilidade. O problema que se tinha não era angariar investidores privados, mas sim recusar muitos deles. Um comentário negativo manifestado pelos operadores aeroportuários internacionais foi o peso que as empresas de construção tinham no Consórcio, o que foi, por eles, considerado incómodo. Mas Portugal sempre foi muito dependente do lobby da construção, tal como já tinha acontecido nas concessões das autoestradas em que se quis transformar empresas de construção em concessionárias de autoestradas. Definimos quase sempre o modelo errado.
No final de 2008 o Asterion tinha a sua proposta finalizada com um modelo para o aeroporto de Alcochete, definido e estudado ao detalhe, pronto para responder ao concurso que o governo se tinha comprometido a lançar. Em Abril de 2010, o Asterion ainda apresentou um vídeo com a solução a que se chegou, “Uma visão para o Novo Aeroporto”, numa conferência que organizou em Lisboa, onde um dos oradores foi o Prof. John Kasarda, uma referência no desenvolvimento de cidades aeroportuárias.
Enquanto se aguardava o lançamento do concurso, alguém decidiu que a ANA (ainda antes da privatização) também devia fazer um Plano Diretor e estudos de arquitetura para o novo aeroporto em Alcochete. Não sei se foi daqui que saíram os valores e os prazos que agora entraram na opinião pública como sendo inquestionáveis. Mas sempre me pareceu estranho e financeiramente questionável que o Estado se proponha lançar um concurso internacional para a privatização da ANA e construção de um novo aeroporto de Lisboa e que depois queira condicionar a entidade que vai selecionar para operar o aeroporto, apresentando-lhe um modelo de aeroporto diferente do que eles considerariam mais adequado. Ou seja, é como se alguém fosse comprar um terreno para construir a sua casa mas teria que a construir com um projeto definido pelo vendedor do terreno, apesar de ter desenvolvido o seu próprio projeto e ter de pagar as obras a realizar. Estranho, não é? Várias vezes tenho perguntado a mim próprio porquê estes estudos? Para justificar o atraso num processo que era claro? Para que as pessoas que estavam na ANA, na altura, não perdessem protagonismo? Ou por qualquer outra razão que não consigo imaginar. Alguém saberá, certamente.
Quando a situação de Portugal já era insustentável, o governo de José Sócrates reconhece a debilidade financeira em que tinha mergulhado o país e pediu ajuda externa. Ajuda essa que lhe foi dada e acabou por ser gerida pelo governo de Passos Coelho, entretanto eleito, depois do Partido Socialista perder as eleições legislativas em 2011.
Com a entrada da Troika, os projetos de investimento foram adiados, entre os quais a construção do Novo Aeroporto de Lisboa. O governo de Passos Coelho decidiu privatizar a ANA e escolheu a Vinci Airports, assinando um contrato de concessão em 14 de Dezembro de 2012. Nesse contrato refere-se a necessidade da construção de um Novo Aeroporto de Lisboa, quando fossem verificadas determinadas condições de tráfego, sem precisar o local.
A simples leitura do Contrato de Concessão permite ver que a solução Portela+Montijo não é referida. Aparentemente, o governo de Passos Coelho encarou essa hipótese mas apenas no 1º governo de António Costa o ministro Pedro Marques assina um Memorando de Entendimento com a ANA, em 15 de Fevereiro de 2017, que permite a substituição da exigência de construção do NAL pela solução Portela+Montijo.
Houve sempre muita resistência ao Montijo, quer por questões ambientais, quer por razões de operacionalidade aeroportuária, quer pelo custo exagerado para uma solução temporária. Mas o tempo foi passando, uns dias avançava o Montijo, noutros dias parecia que se iria preferir Alcochete, aparecem também à baila Alverca e Tires, na região de Lisboa, e até Beja como solução final. Deixou-se caducar a validade de estudos de impacte ambiental. Ou seja, ia-se avançando para o vazio.
Quando a retoma do tráfego aeroportuário se começou a fazer sentir e se tornou claro o disparate de se ter adiado uma solução para esta componente do sistema aeroportuário nacional, aparece, como se costuma desejar, um D. Sebastião dos tempos modernos.
A solução anunciada pelo ministro Pedro Santos, satisfaz, aparentemente, toda a gente: mantém-se e fazem-se obras na Portela, constrói-se o Montijo e inicia-se Alcochete. Mais do que uma solução sustentada parece ser uma fuga para a frente. Mas, a vida é um pouco mais complexa que estas tiradas messiânicas.
Resumindo:
- O novo aeroporto de Lisboa e a privatização da ANA, em simultâneo, não foram realizados na primeira década do ano 2000 por manifesta inaptidão do governo de Sócrates, que não conseguiu lançar o concurso a que se tinha comprometido em 2006.
- Mais de 10 anos depois do adiamento formal da construção de Alcochete, a solução Portela+Montijo é formalizada através de um Memorando de Entendimento, aparentemente, sem ter sido baseada em estudos comparativos que se tivessem divulgado.
- A comunicação social e os fazedores de opinião falam com muita insistência no custo da solução Alcochete e nos prazos para a sua realização. Não vou negar a sua veracidade mas não tenho informação sobre como foram obtidos. Apenas sei que a solução estudada pelo Asterion, contemporânea do projeto da ANA para Alcochete, apresentava valores muito inferiores e prazos muito mais reduzidos. Uma explicação pode ser porque a solução Asterion era feita por privados, com muitas preocupações de controlo de custos e rapidez de processos construtivos. Talvez a solução da ANA, não promovesse estas preocupações.
Com todo este enquadramento, que nem sempre é objetivamente divulgado, criando dificuldades nalguma racionalidade nas discussões sobre o assunto, não deixa de ser possível apresentar um processo decisório tentativo, que não será pior que uma decisão tecnicamente mal fundamentada:
- Avaliar com rigor, com base nos estudos existentes, qual é, de facto, o custo estimado associado à construção de uma primeira fase do Aeroporto de Alcochete (pistas e terminal) e infraestruturas de transporte mínimas.
- Da mesma forma, estimar a duração destas obras, admitindo que se envolveria uma gestão de projeto profissional, tecnicamente agressiva e com capacidade de decisão.
- Estes indicadores devem ser comparados com os calculados para a solução Montijo, para condições o mais possível idênticas de tráfego aéreo.
- Apesar de estar a sobrevalorizar, de início, a vertente económica das obras a realizar, esta comparação deve ter em linha de conta considerações ambientais, já amplamente estudadas, e condições de acessibilidade a Alcochete e ao Montijo, numa perspetiva de desenvolvimento dos transportes na área metropolitana de Lisboa. Ou seja, nem todos os custos de infraestruturas a realizar devem ser atribuídas ao aeroporto em Alcochete.
- Um estudo com as características enunciadas, não será fácil de fazer mas está longe de ser impossível. E quando digo que não é fácil não estou a falar, apenas, do ponto de vista técnico. Estou, também, a falar do enquadramento político que, a meu ver, tem dificultado encontrar uma solução aceitável.
- Existe um volume apreciável de informação disponível e, não tenho dúvidas, que há um número de pessoas capaz com conhecimento aprofundado sobre estas matérias. Por isso, julgo que o estudo comparativo não deveria demorar mais de um mês de trabalho a ser feito. E, se possível, incorporando informação obtida de estudos feitos por privados sobre estes assuntos e não, apenas, por entidades públicas. A sua realização precisa de contar com uma equipa pequena, especializada, motivada e com uma liderança independente forte.
- As conclusões deste estudo, deveriam ser apresentados a um muito pequeno grupo que as validasse tecnicamente, num prazo de uma semana, antes de serem apresentados ao poder político, para que seja possível definir uma solução final fundamentada e justificada.
- Se os indicadores de prazo e custo forem significativamente maiores (embora, nesta altura, seja sempre difícil quantificar o que se considera significativamente), e adotando uma abordagem pragmática, poder-se-ia considerar inevitável construir uma solução má, Montijo, onde o preço a pagar reflete a inoperância dos governos socialistas de Sócrates e Costa.
- De qualquer forma, o prazo para que qualquer uma das soluções comparadas anteriormente entre em funcionamento não será curto. E há um “asset” disponível que é Beja. Não que Beja possa ser, alguma vez, considerado como uma solução aeroportuária que substitua um novo aeroporto que sirva a vasta região de Lisboa. Mas pode ser utilizado como solução de recurso. É uma questão de jogar com as taxas aeroportuárias e ser minimamente criativo e inovador para pôr aquele aeroporto a funcionar nesse enquadramento.
- De qualquer forma, o aeroporto de Alcochete, no atual contexto de tráfego aéreo, parece incontornável como solução de futuro e, mais cedo ou mais tarde, terá de ser construído. A Portela é uma solução a prazo e Montijo nunca poderá, por si só, substituir a Portela.
Por fim, convém salientar que antes da privatização da ANA pelo governo de Passos Coelho, quando estava prevista a simultaneidade da privatização com a construção do NAL, era possível captar o investimento de operadores aeroportuários privados. Neste momento tal não acontece. Há um Contrato de Concessão assinado e em vigor com a Vinci, que tem de ser respeitado. Qualquer solução para um novo aeroporto terá que ser analisada, discutida e acordada com a ANA/Vinci, nomeadamente as questões financeiras e legais, mesmo que isso possa implicar um aumento do período de concessão. Se todo este processo for conduzido de forma transparente, séria e tecnicamente fundamentada, não vejo porque não se consiga obter uma solução consensualizada que sirva os interesses de todos os stakeholders, que somos, também, todos nós.
13 de Julho de 2022