O governo anunciou há dias uma linha de alta velocidade entre Lisboa e o Porto, como se estivesse a anunciar algo que fosse uma novidade a nível nacional. É um déjà vu, por muito que isso possa custar ao governo. O valor do investimento, para já, é de 4,5 mil milhões de euros sendo natural que seja revisto em alta.

Talvez o governo se tenha esquecido do passado. Ou talvez não queira recordar-se que as obras de alta velocidade ferroviária, que chegaram a estar contratadas, tiveram que ser paradas na sequência da situação de bancarrota em que o PS de José Sócrates deixou o País.

Gostaria de recordar, em primeiro lugar, uma outra experiência ferroviária: as obras de modernização da Linha do Norte e a sua relação com o que agora se propõe.

A modernização da Linha do Norte começou em 1994 e as obras ainda decorriam em 2004, inacabadas, quando me desliguei deste processo. Esta modernização teve muitas vicissitudes, alterações do âmbito da intervenção e indefinições de estratégia, donde resultaram atrasos e derrapagem de custos face aos iniciais, calculados para outra realidade. Mas, no início deste século XXI, houve uma tentativa para diminuir significativamente o tempo de duração da viagem “Lisboa-Porto”, que ultrapassava as mais de três horas que ainda hoje se verificam. Passariam a ser duas horas e poucos minutos. Para isso, seria necessário acabar com as passagens de nível e torná-las desniveladas, transformando-as em passagens rodoviárias superiores ou inferiores. Os comboios têm obrigatoriamente que abrandar nas imediações das passagens de nível e, quando estas são próximas, podem ocorrer velocidades baixas durante distâncias consideráveis, o que aumenta significativamente o tempo de viagem. Como atualmente se verifica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas o fecho de passagens de nível é sempre objeto de difícil negociação com as autarquias locais, que aproveitam muitas vezes esta situação para fazer exigências, algumas para além do razoável. A administração da REFER da altura dispôs-se a encarar este problema de frente e fez-se um plano para acabar de vez com as passagens de nível na Linha do Norte. Uma solução difícil mas fazível e que não era demasiado dispendiosa. Infelizmente, com a chegada ao governo de José Sócrates, a administração da REFER foi substituída por outra, muito ligada ao PS, e tudo caiu por terra, continuando os passageiros da Linha do Norte, ao longo de todos estes anos, a terem que suportar tempos de viagem muito superiores aos que seriam necessários. Talvez fosse conveniente que, agora, quando se diz não haver falta de dinheiro, antes de se entrar noutras aventuras mais onerosas, se começasse por desnivelar as passagens de nível da Linha do Norte de forma a permitir, desde já, uma redução muito significativa dos tempos de viagem entre as diversas cidades por onde a linha passa.

A questão de uma ligação de alta velocidade entre Lisboa e o Porto e a sua inserção na rede ferroviária nacional tem um conjunto de problemas. Não serei maldizente ao ponto de afirmar que todos os problemas não foram equacionados e, de alguma forma, resolvidos. Mas como não foram objeto de explicação na apresentação feita pelo governo e, pela nossa experiência coletiva passada, de que muitas vezes todos estes anúncios megalómanos acabam por se traduzir em nada, não queria deixar de os apresentar aqui. Tanto mais que, se não tiverem sido considerados agora e se este processo não avançar, pode ser que daqui a vinte anos, quando esta linha for novamente apresentada como uma novidade, alguém não se esqueça de pensar neles.

Quando estive envolvido no projeto da rede de alta velocidade ferroviária, que começou por volta de 2004, os meus colegas especialistas em linhas de alta velocidade, com grande experiência na sua implementação e operação, cedo explicaram que o conceito de uma rede ferroviária de alta velocidade era completamente diferente do conceito de uma rede ferroviária tradicional. Ou seja, os pressupostos técnicos de abordagem de ambas eram muito diferentes e sua operação totalmente distinta. Agora, nas notícias que li na imprensa, os comboios de alta velocidade podem andar na Linha do Norte e os comboios tradicionais na linha de alta velocidade como se fosse tudo farinha do mesmo saco. Pode ser que a tecnologia tenha evoluído muito e que isto já não constitua um problema, mas tenho muitas dúvidas que seja esta a realidade e receio que esta diversidade não tenha sido acautelada ou compreendida.

Há também o problema da bitola, que nos vem afligindo há várias dezenas de anos, principalmente quando se começa a falar de ligações internacionais. Para quem não está familiarizado, a bitola é a distância entre carris e há duas bitolas em funcionamento: a ibérica e a europeia. A ibérica era, e ainda é, utilizada em Portugal e Espanha, desde o início do caminho de ferro na península. A bitola europeia é utilizada nos restantes países europeus. A Espanha já começou há muitos anos a fazer a migração da bitola ibérica para a europeia mas em Portugal este é, ainda, um assunto de muito debate. E, nesta última apresentação, o governo decidiu apostar na bitola ibérica.

Quando se fala na ligação em alta velocidade entre Portugal e a Europa, passando obviamente por Espanha, a primeira pergunta que me surge é: como se vai integrar a nova ligação “Lisboa-Porto”, em alta velocidade e com bitola ibérica, com a ligação “Lisboa/Porto – Madrid/outro destino espanhol” que terá de ser feita em bitola europeia? Para-se a meio para mudar os bogies (estrutura que carrega o rodado) ou muda-se de comboio? Convém não esquecer que a ligação de Portugal à rede Europeia de alta velocidade faz parte de um desígnio europeu de ter as capitais de todos os países ligadas entre si.

Tudo isto me faz pensar que seria muito positivo definir um plano ferroviário nacional que incorporasse e definisse todas as ligações ferroviárias, nacionais e internacionais, ponderando devidamente as especificações técnicas e financeiras, em vez de resumir a questão ferroviária nacional ao anúncio de uma ligação futura entre Lisboa e o Porto em 1h:15m. E, já agora, que se pensasse de uma vez por todas se o novo aeroporto que irá substituir a Portela, onde quer que fique, deva contemplar, ou não, uma ligação à rede de alta velocidade ferroviária nacional.

Como se tudo isto não bastasse, temos as questões financeiras. Como se sabe o transporte ferroviário é um tipo de transporte que obriga a grandes investimentos que, habitualmente, nunca são recuperados pelos investidores. Quando é o Estado, somos nós todos que pagamos e, para muitos, o problema está resolvido. Mas, quando se pretende envolver privados neste processo, dificilmente eles conseguem suportar mais do que os custos de operação, eventualmente uma pequena parte do capital investido, pois, caso contrário, se se assumisse a recuperação integral do capital, os preços dos bilhetes seriam incomportáveis e não haveria passageiros. Também seria interessante definir com mais rigor qual o envolvimento que os privados poderão vir a ter neste processo e se o Estado vai continuar, como tem, tristemente, sido apanágio dos governos socialistas, assumir a totalidade do risco. Recordo que no governo de José Sócrates os privados eram pagos pela disponibilidade da infraestrutura de alta velocidade, nada tendo a ver, uma vez esta estando disponível, se passavam por lá comboios, ou não, com ou sem passageiros que pagassem bilhetes. O mesmo tipo de abordagem que este mesmo governo fez quando decidiu que devia ser o Estado a assumir todo o risco das concessões rodoviárias dos privados. Opções socialistas para proteger os privados, ou alguns deles, em detrimento dos contribuintes.

Ainda nesta apresentação, o governo definiu a meta de 1h:15m da a viagem “Lisboa-Porto” para a década de trinta. Não falou de preços dos bilhetes. De acordo com estudos que se fizeram há alguns anos atrás, e que podem estar desatualizados agora, os preços dos bilhetes serão consideravelmente superiores numa ligação em alta velocidade face a uma ligação ferroviária tradicional. O que se justifica e compreende. Como referi antes, se se desnivelarem as passagens de nível na Linha do Norte, por um preço despiciendo quando comparado com os investimentos agora anunciados, a viagem pode passar a ter uma duração de cerca de duas horas. Fica a pergunta: haverá um número significativo de pessoas que esteja disponível para pagar, digamos, três vezes mais por um bilhete para poupar 45 minutos de trajeto numa ligação “Lisboa-Porto”? Talvez os executivos que não estejam em teletrabalho. O que espero que não aconteça é que se mantenham as passagens de nível da Linha do Norte e a duração de mais de três horas de viagem para justificar os investimentos que se anunciam e que não se sabe se alguma vez se vão realizar.

Por tudo o que disse antes, tenho muito receio que este anúncio que o governo agora fez, para ter tempo de antena e recuperar figuras públicas, não esteja suficientemente consolidado. Seria muito interessante, e no meu entendimento imprescindível, ver definida e implementada uma política multimodal de transportes e todas estas questões abordadas de forma integrada e consistente, com menos pompa e mais profissionalismo. Servia, pelo menos, para evitar eventuais disparates que tenho receio que se avizinhem.

E, já agora, quando se pensa em soluções que vão ser realizadas num futuro não imediato, que se avalie, nem que seja para descartar, ligações realmente rápidas entre Lisboa e Porto, a velocidades que se estão a considerar como possíveis noutros países, e que já estão em construção/operação. Nessa altura, sim, encolhia-se o País.