Nas repúblicas socialistas, na URSS por exemplo, a propriedade estava em grande medida coletivizada. Isto não quer dizer que fosse de todos, mas que pertencia ao Estado. Pertenciam ao Estado, direta ou indiretamente, quase toda a terra agrícola e não agrícola, maquinaria e estruturas. À coletivização da propriedade não correspondia, no entanto, igualdade ou equidade na posse e uso. Assim, enquanto Leonid Brezhnev (1906—1982), família & associados tinha acesso a casas de luxo, dachas no Mar Negro, objetos de arte, automóveis e outros bens supérfluos que, não sendo deles, lhes permitiam ter um nível de vida semelhante a milionários texanos, a grande massa do povo trabalhador vivia em apartamentos exíguos e miseráveis, deslocava-se em transportes públicos, e para comprar manteiga tinha de ir para uma fila às quatro da manhã.

Se a Rússia já pôs de lado este modelo económico por opressivo, injusto e burocrático, Portugal ainda continua, há já quase duas gerações, cega e obtusamente a “abrir caminho para uma sociedade socialista” com o objetivo de construir “um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (preâmbulo da Constituição da República Portuguesa (CRP)), como se o socialismo não fosse historicamente a antítese da liberdade, da justiça e da fraternidade. Tal como na Rússia de há um século, esta sociedade socialista implica uma redefinição na posse e uso das coisas. Mas, ao contrário do que aconteceu na Rússia, e porque seguimos uma “via original para o socialismo”, entre nós a redistribuição da posse e uso faz-se sem se alterar a propriedade, mas transformando-a num instituto do direito irreal.

Vejamos um caso concreto. O proprietário de um imóvel antigo e degradado numa zona central em Lisboa, edifício com cinco pisos, todos alugados, recebe mensalmente em rendas cerca de 200 euros brutos, que não líquidos. A Sra. Josefina*, a empreendedora inquilina do rés-do-chão, que paga atualmente 37 euros de renda, construiu há tempos no quintal, sem dizer nada a ninguém, um anexo com quatro quartos e casa de banho, que aluga a terceiros, e que se estima lhe rendam perto de 1000 euros mensais. De notar que, neste caso, para além de brutos, os 1000 euros também são líquidos. Diga-se, de passagem, que Sra. Josefina, que é reformada, tem visto a renda que paga aumentar anualmente, dentro dos limites permitidos pela legislação nacional, em 20 ou 30 cêntimos, para grande escândalo do Bloco. A renda que cobra aos seus inquilinos, essa flutua de acordo com as condições do mercado livre e não regulamentado, tal como se fosse nas Ilhas Caimão.

Devido ao mau estado da fachada, no início deste ano, a CML fez uma vistoria ao prédio. No decurso da visita, não só constatou a degradação da fachada, mas também descobriu a existência do anexo no quintal. O Sr. Silva*, o proprietário, que se encontrava presente, foi imediatamente informado que a nova estrutura não estava de acordo com a planta camarária, pelo que foi intimado a demoli-lo. “Mas porquê eu, se não fui eu que a construí?” perguntou, “e como?, se não posso lá entrar sem a autorização da Sra. Josefina?” E acrescentou: “Mas seria muito bom se os senhores, que representam a autoridade camarária, lhe comunicassem o que me disseram agora.” Aqui, os zelosos representantes camarários deixaram cair o assunto. Terá sido por considerarem que o pátio constitui uma parcela das Ilhas Caimão e que a jurisdição da CML lá não chega? Umas semanas depois o proprietário recebeu um ofício a intimá-lo a fazer obras, que um empreiteiro orçamentou em quase vinte mil euros.

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Esta situação espelha o socialismo português. Por um lado, o dono do prédio tem a propriedade e todos os ónus que com ela vêm, como pagar impostos, obedecer a regulamentos camarários, e receber vistorias que o obrigam a obras de vinte mil euros num edifício que lhe rende 200 euros mensais before taxes (reparar que é taxes e não tax). Por outro lado, ficou privado de todos os direitos, ditos “reais”, que a doutrina tradicionalmente associa à propriedade: não tem direito a usar, não tem direito a negociar livremente a renda, não tem direito a terminar um contrato que é objetiva e claramente lesivo dos seus interesses, nem tem direito a vender livremente a sua “propriedade” a terceiros.

Pode-se argumentar que a Sra. Josefina necessita de proteção, porque é idosa e pobre, e que o seu direito à habitação é-lhe assegurado pela CRP, art.º 65, 1, e art.º 72, 1. Mas a quem incube a obrigação de assegurar o direito à habitação? Ao Estado, ou ao, literal e metaforicamente, pobre Sr. Silva? Pode ser que o Estado necessite do prédio do Sr. Silva na prossecução da sua obrigação constitucional. Se determina que tem necessidade dele de modo permanente poderia “coletivizar” o prédio do Sr. Silva, expropriando-o; se, por outro lado, considera que apenas precisa dele de modo temporário, enquanto arranja uma solução mais permanente para a Sra. Josefina, poderia requisitar o prédio. Porque o não faz? Será porque “a requisição e a expropriação … só podem ser efetuadas … mediante o pagamento de justa indemnização”? (CRP, art.º 62, 2) Mas que poderes dá a Constituição ao Estado para impor ao Sr. Silva que ele seja, contra sua vontade, prestador de habitação social?

Para além de ser um socialismo que não coletiviza a propriedade, o socialismo português tem uma outra originalidade: cria paraísos fiscais dentro do país. Pois não se chama paraíso fiscal à geografia onde o rendimento está totalmente isento de todos os impostos? E o facto é que os lucros dos investimentos que a Sra. Josefina fez no seu quintal são absolutamente tax free, tão tax free como os que ela fizesse no Panamá ou Ilhas Caimão. E não se argumente que a Sra. Josefina só não paga impostos sobre os rendimentos obtidos no quintal porque o Estado não sabe. O Estado sabe, mas não quer saber. Porquê? Porque a Sra. Josefina não é proprietária do quintal. Alguém duvida que se o anexo fosse construído e gerido pelo Sr. Silva ele não receberia uma intimação das Finanças logo a seguir à vistoria da CML e ainda antes de ter tempo para o legalizar junto dos serviços competentes?

Mais: não é só isenções à legislação fiscal que o nosso socialismo dá à sua nomenclatura. Para além das isenções fiscais os não-proprietários estão, na prática, isentos de uma parte do normativo nacional, quanto mais não seja, das regras relativas ao ordenamento urbano. Um proprietário precisa de autorizações por tudo e por nada, mas um inquilino pode fazer o que quiser, até construir um anexo!, sem pedir autorização a ninguém.

Finalmente, o nosso socialismo-não-coletivista tem outra originalidade, também ausente na teoria económica de Marx & Engels: achar não só razoável, mas até justo, que a parcela possa gerar mais rendimento que a totalidade de um ativo: enquanto os 200 euros pelo prédio todo do Sr. Silva, que é proprietário, são excessivos, os 1000 euros da Sra. Josefina, que é arrendatária, não só estão bem, mas são intocáveis. O segredo para se poder pensar assim, sem notar nenhuma incongruência, está no uso do conceito de classe: a classe dos proprietários é parasitária; logo, a classe dos arrendatários merece todas as proteções, benesses, privilégios e imunidades.

A construção do socialismo nacional continua, anexo a anexo, até à irrelevância final do art.º 62 da CRP!

*para proteger a privacidade é usado nome fictício