As eleições europeias estão à porta. E já foi lançado o clássico argumento: Portugal descende da civilização greco-romana e faz parte do mundo judaico-cristão. Ao que parece, isso deve levar a opções políticas claras. Mas, no fundo, o que é que esta afirmação quer dizer?

Em 2016, Boris Johnson e Mary Beard tiveram um debate público sobre a importância da Grécia e da Roma Antigas na forma como hoje entendemos o mundo. No entanto, quando a já reconhecida classicista começou a falar, deixou claro, ao então presidente da câmara de Londres, que se recusava a cair em idealizações do passado e da natureza humana.

Na verdade, dizer que Portugal, e a Europa no seu todo, descendem das civilizações clássicas, o que quer exatamente dizer? Que descendemos de figuras como Cícero, que defendeu a República Romana contra a tentativa oligárquica de Catilina? Ou que derivamos do mesmo Cícero, que chegou a aconselhar que, para se vencer eleições, o candidato deveria “desenterrar acusações de crime, despesas injustificadas e escândalos sexuais” contra os seus rivais? Ser filho da civilização greco-romana significa ser filho da sociedade que inventou a ideia primordial de democracia, que desenvolveu os jogos olímpicos e o imaginário da literatura ocidental; ou dos homens que condenaram Sócrates à morte, que não tinham qualquer noção moderna de direitos das crianças, e não se preocupavam muito com a “igualdade de classes”? Assentar a vida da Europa nas bases do Cristianismo significa pensar o mundo atual através, por exemplo, do pensamento de S. Paulo, segundo o qual, diante de Cristo, “não há judeu, nem grego, escravo ou homem livre”; ou seguir o caminho das cruzadas e da inquisição?

De facto, como Mary Beard alertava no debate com Boris Johnson, a cultura clássica – e aqui entendo a junção das civilizações greco-romana com o filão judaico-cristão – é mais plural do que, em geral, se pensa. Aliás, se olharmos para os livros fundamentais da civilização clássica: a Ilíada, a Odisseia, a Eneida e a Bíblia, veremos muito mais do que brilho e glória. A Ilíada tem o seu enredo desenvolvido em torno do direito de posse de uma prisioneira, de seu nome Briseida. A Odisseia fala de um homem geográfica e emocionalmente perdido. A Eneida começa com o “herói” naufragado lavado em lágrimas. A Bíblia encaminha toda a ação para um Messias que, segundo S. Mateus, descende de uma prostituta.

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Por isso, descender da civilização clássica é contraditório. E isso é o que torna tudo muito mais poderoso. No fundo, a cultura clássica não é uma espécie de amuleto do bem ou um símbolo automático de virtude. Na verdade, a força desta herança reside, precisamente, no facto de, em relação a ela, não sermos, como Mary Beard indicou, filhos legítimos, mas filhos bastardos. Uma sociedade que se fundou através da impureza, num mundo já conspurcado.

Há uns anos atrás houve uma discussão para decidir se se devia, ou não, afirmar num dos textos da União Europeia, que a Europa era descendente da matriz cristã. Curiosamente, quem hoje cita o Papa Francisco nas suas posições sobre o clima e a imigração é, não raras vezes, quem se recusou a fazer essa inscrição na Constituição Europeia. Mas, a verdade é que a herança clássica serve, ao mesmo tempo, ora para ser contra a imigração, ora para ser a favor; ora para ser a favor do liberalismo e do socialismo, ora para ser contra; ora para se apoiar a “família tradicional”, ora para se defender as “novas famílias”.

É verdade que descender de tudo isto é ser, simultaneamente, platonista, aristotélico, gnóstico, epicurista, estóico, sofista, pré-socrático e pós-socrático; é ter como antepassado o tomismo, o nominalismo, o racionalismo e o empirismo, o românico, o gótico, o barroco e o neo clássico, o cubismo e o surrealismo; é ter relações pacíficas com o iluminismo, o renascentismo, o romantismo, o idealismo – alemão ou de qualquer outra parte – o naturalismo, o realismo e o modernismo; e isso é muito trabalho para uma pessoa só. Mas há algo que a herança cultural europeia não pode ser: a canela no topo da política europeia. Só se usa quando dá jeito. Mas, para isso, também é preciso que ela deixe de ser vista de um ponto de vista elitista e que abrace a sua contradição essencial: possuir, dentro de si, tanto de belo como de monstruoso.