No final de mais de três anos de funcionamento, e sob a liderança inteligente e serena de Luís Marques Guedes, os trabalhos da Comissão de Transparência (CT) estão na sua reta final. Em política, como sabemos, até ao lavar dos cestos é vindima, por isso ainda não é hora de balanço final. Mesmo após as votações finais em comissão, haverá ainda votações finais em plenário onde poderá haver avocações de artigos específicos. De qualquer modo já é possível fazer uma apreciação preliminar quer do processo quer dos resultados positivos e alguns problemas dos três principais diplomas: 1) os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos; 2) o estatuto dos deputados e 3) a representação de interesses, incluindo o lóbi. No artigo de hoje abordo apenas o processo e o diploma 1).
Comecemos pelo processo. Quando disse há tempos que na Assembleia da República há muitas atividades, mas trabalha-se pouco (em termos de resultados) alguns colegas deputados torceram o nariz. Mas esta comissão parlamentar é o exemplo vivo disso. Muitas reuniões, muitas propostas, inúmeros debates, frequentes adiamentos, vários avanços e recuos, e no final algumas votações à pressa sobre propostas, algumas novas apresentadas na vigésima quarta hora, que são aprovadas, sem debate como foi o caso da proposta apresentada pelo PSD, viabilizada com a abstenção do PS, que escancarou a porta para os deputados poderem participar em sociedades de advogados e prestar serviços de litigância contra ou a favor do Estado, ao contrário do que está disposto no novo projeto lei (ver próximo artigo).
O produto final será, nalguns aspetos pontuais, melhor que a lei actual, mas não é o passo que seria necessário e possível para credibilizar o exercício de cargos políticos e altos cargos públicos. A ineficiência demonstrada nesta comissão resulta de vários factores: da complexidade e abrangência das matérias, dos partidos não terem ideias claras sobre o que pretendem; de mudarem frequentemente de opinião, por vezes com mudança de líder (PSD); dos poucos recursos (assessores) de apoio aos deputados, e do mau uso dado aos, por vezes muito bons, assessores existentes. O aparente paradoxo disto é que naquilo que os deputados poderiam melhorar as suas condições de trabalho a maioria votou… ao contrário.
Está previsto no atual estatuto dos deputados que têm direito a um assistente pessoal. A democracia tem custos e esta componente de “capacitação institucional” assume uma clara importância tendo em conta que a elaboração e discussão de políticas públicas está cada vez mais complexa, exigindo que seja garantido suporte técnico necessário a cada um dos deputados para que estes possam desempenhar de forma eficaz e consciente as funções de fiscalização e de controlo que lhe estão conferidas. Tal, contudo, não tem sido cumprido e na prática são os grupos parlamentares que gerem verbas que lhes permitem contratar assessores. Pois em vez de manter o direito expresso na lei e tentar reforçar o apoio individual aos deputados, pretende suprimir-se o direito a ter um assessor. Reforçou-se assim o apoio às lideranças dos grupos parlamentares, na contratação de assessores que, na realidade, tanto podem trabalhar na AR e para os deputados, como fora dela para o partido. Desfaz-se o aparente paradoxo, reforça-se o poder dos diretórios partidários, reduz-se o direito individual dos deputados.
Dos três diplomas aquele em que maior progresso existiu foi o respeitante aos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. Desde logo a maior abrangência das obrigações declarativas a muito mais pessoas, incluindo agora também os magistrados, os autarcas e dirigentes municipais. Depois a maior simplicidade e coerência das declarações. Passa a haver apenas uma declaração de interesses, rendimentos e património dos titulares de cargos políticos a altos cargos públicos e tudo será digitalizado e não parte em papel como acontece hoje. O enriquecimento injustificado poderá assim ser mais facilmente detetado e, pela via fiscal, apropriado em grande parte pelo Estado, contornando-se assim os problemas de constitucionalidade levantados pelo Tribunal Constitucional no passado quanto ao enriquecimento ilícito. Finalmente, ainda pela positiva, também de assinalar a criação de uma nova entidade da transparência que terá como funções fiscalizar o cumprimento dessas obrigações declarativas, mas que só será útil e eficaz na sua ação se for dotada dos meios necessários para o seu funcionamento (evitando que ocorram limitações idênticas às que se têm verificado quanto à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos).
O aspeto mais problemático desta lei prende-se com o regime existente em matéria de ofertas e hospitalidades, consagrado no art. 15.º, cuja redação é um “desastre total” (o artigo, não a Lei como foi noticiado em vários órgãos de comunicação social). Em relação às ofertas, derrotou-se, e bem, uma proposta extrema (de registar tudo), que era impraticável e abriria a porta ao não cumprimento da lei, pois exigiria que se registasse a oferta de coisas simbólicas como um galhardete, um CD ou um livro, para o oposto só registar as ofertas acima de 150 euros. E passou-se de só se poder aceitar ofertas abaixo de 150 euros, para que se possa aceitar tudo, mesmo acima de 150 euros, desde que a pessoa que recebe, apresente a oferta à entidade (Parlamento, Câmara, Instituto público, etc.) e a entidade diga… fique com ela. Tudo depende da qualidade das relações entre o titular do cargo político e a instituição em que está.
Note-se que este artigo fica aquém quer das regras do código de conduta do governo, quer do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, onde ofertas acima de 150 euros não podem ser aceites. A proposta que fiz, e foi chumbada, era consistente com as regras do governo e do parlamento europeu. Até 50 euros não era registado, acima de 50 e abaixo de 150 era registado e o titular poderia receber, acima não poderia receber.
Mas mais grave são as regras aprovadas sobre hospitalidades (viagens, refeições e alojamento). Aqui, os buracos na lei são tantos que se trata efetivamente de um passador. Basicamente, tudo pode ser aceite e nada é obrigatoriamente registado. Na realidade pode ser aceite qualquer convite de uma entidade privada desde que a isto corresponda um “ato de cortesia ou urbanidade institucional”. Aqui está a fórmula que permite aceitar tudo.
Quanto às formas de contornar o registo desta hospitalidade há duas à escolha. Primeiro, não existe dever de registo quando existem relações pessoais ou familiares. Familiares percebe-se e aceita-se (foi a proposta rejeitada que fiz), mas “relações pessoais”? Indaguei na Comissão, sem sucesso, se a palavra “relações” não implicava já que era entre pelo menos duas pessoas. Não tive resposta. (Talvez o amável leitor me possa esclarecer se pode haver um convite, que não envolva uma relação pessoal). Uma forma mais subtil de evitar o registo, é que a lei prevê que o titular comunique e justifique a aceitação para efeitos de registo, mas não prevê a obrigatoriedade da instituição fazer esse registo. Mais uma vez, com boas relações na instituição e uma ajudinha consegue evitar-se o registo.
A importância desta matéria é que há uma linha contínua entre a cortesia e urbanidade, a influência, o tráfico de influências e a corrupção. E é por isso que é desejável a transparência. O grau de transparência que existe hoje em relação a ofertas de viagens a médicos é muito superior ao que existirá para titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.