Quando a autoridade se apresenta sob o aspeto de organização, desenvolve uma atração suficientemente fascinante para converter comunidades de pessoas livres em Estados totalitários.

A frase, extraída de um artigo publicado em 1940 no The Times, serviria de mote a Hayek para introduzir o 13º capítulo (“The Totalitarians in our Midst”) da obra The Road to Serfdom.

Lembrei-me disto, quando li a resolução do Conselho de Ministros que restringe a circulação das pessoas neste fim-de-semana.

Não devia ser necessário, mas parece conveniente recordar que o n.º 2 do art.º 18 da Constituição dispõe que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

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A mesma Constituição prevê, ainda, no art. 19º, a possibilidade de suspensão transitória de direitos fundamentais quando seja decretado estado de sítio ou de emergência. Também aqui não passa um cheque em branco aos governantes, antes restringe e limita devidamente a sua ação, impondo que esses estados sejam decretados pelo Presidente da República, previamente autorizado para o efeito pela Assembleia da República.

É, portanto, assente e incontroverso, do ponto de vista constitucional, que:

  1. a restrição de direitos fundamentais só pode ocorrer por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo autorizado por aquela, ou em situação de estado de sítio ou de emergência;
  2. a restrição ou suspensão de direitos não pode ser arbitrária, isto é, e simplificando, não deve ser discriminatória nem desproporcionada.

A resolução de segunda-feira passada não cumpre nenhum destes requisitos.

Em primeiro lugar, não é ato de natureza legislativa – uma resolução é um simples regulamento –, nem surge encadeada em nenhum ato dessa natureza – os atos para que remete não constituíram autorizações para restringir e foram, alguns deles, adotados numa situação (de emergência) que não subsiste neste momento.

A resolução tão-pouco é adequada à finalidade que visa proteger – a necessidade de proteção da saúde no quadro de uma época propícia a ajuntamentos nos cemitérios não procede, porquanto o acesso continua a ser permitido às pessoas que residem no mesmo concelho do cemitério que pretendem visitar. Não é claro, além do mais, qual a importância que o governo atribui a essa finalidade, uma vez que prevê tantas exceções à proibição de circulação que se torna impraticável qualquer controlo.

Por fim, a resolução é arbitrária – não se entende por que se limita a visita de cemitérios, ao ar livre, mas não a frequência de salas de espetáculos, que são espaços fechados. Não se discerne por que se autorizam crianças a circular para frequentar atividades de tempos livres, mas se proíbe os adultos de fazerem o mesmo.

É, portanto, destituída de qualquer racionalidade.

Infelizmente, não surpreende nos tempos delirantes em que vivemos. Somos governados à vista, sem qualquer critério que não seja o da conveniência política, a avidez de mostrar atividade e o receio de gerar reação – é por isso que se autorizam eventos políticos, mas não eventos religiosos (sendo a liberdade religiosa um direito fundamental com a mesma força dos direitos de natureza política, a única explicação plausível para a diferença de tratamento é que as restrições à primeira geram menos reação que as restrições à segunda); é assim que se dispensam políticos de quarentena, mas se mantêm pessoas saudáveis enclausuradas em casa por tempos infindos.

Não devia ser necessário recordar que aqueles procedimentos – impostos pela Constituição – não são meras “burocracias”. Eles integram a mais elementar substância da democracia. Não são, por isso, para ser cumpridos apenas quando tudo corre normalmente; pelo contrário, constituem um travão ao arbítrio, justamente quando tudo corre fora do normal. Quando as medidas sejam necessárias – e algumas poderão ser –, não podem deixar de ser tomadas da maneira imposta pela Constituição.

Não devia também ser necessário recordar que todas as ditaduras se legitimaram através do medo, convencendo os súbditos de que as limitações aos direitos se justificavam por uma qualquer ameaça externa – fosse da guerra, da ideologia ou, agora, da doença. Também então, milhares de pessoas condescenderam “ah, mas se calhar tem de ser, estamos em perigo!”, condenando-se voluntariamente à servidão.

O medo é o maior trunfo do poder, pois dispensa, com o aplauso e descanso dos governados, qualquer limite para o arbítrio.