Quem tem acompanhado a situação política em Espanha nas últimas semanas, por simples interesse ou dever de ofício, saberá que o tema do momento no país vizinho, é o chamado “Delcygate”. O caso conta-se em poucas palavras.
No passado dia 20 de janeiro de 2020, num voo privado, a vice-presidente venezuelana, Delcy Rodríguez, juntamente com o ministro venezuelano do turismo e mais meia dúzia de assessores, aterraram no aeroporto “Adolfo Suárez Madrid-Barajas” onde foram recebidos pelo ministro espanhol dos transportes, José Luís Ábalos – o qual começou por negar o encontro, acabou por reconhecer que subiu ao avião cumprimentar os dignitários de Maduro por cerca de meia hora e terminou reconhecendo que recebeu a ambos na sala VIP daquele aeroporto com quem manteve conversações durante mais de uma hora, cujo conteúdo ainda se desconhece, tendo todavia chegado a colocar a vice-presidente venezuelana em contacto telefónico com o presidente do governo Pedro Sanchez, a quem, entre outras coisas, foi pedido que não recebesse Juan Guaidó, o presidente da Venezuela reconhecido pela generalidade da comunidade internacional e pela própria União Europeia, que se encontrava em giro por alguns Estados europeus e pelos EUA, como de facto acabou por acontecer.
Ao tornar-se pública a situação, soaram todos os alarmes, sobretudo porque Delcy Rodriguez consta de uma restrita lista de personalidades próximas do ditador Nicolas Maduro que se encontram impedidas de entrar, circular ou simplesmente transitar ou cruzar território da União Europeia, pelas suas mais que provadas ligações ao narcotráfico e a uma série de execuções, desaparecimentos de adversários políticos de Maduro e reiteradas violações dos direitos humanos no seu país.
De facto, o Regulamento (UE) 2017/2063 do Conselho, de 13 de novembro de 2017 (publicado no Jornal Oficial da União Europeia, L 295, 14 de novembro de 2017), que impõe medidas restritivas tendo em conta a situação na Venezuela, não deixa margem para quaisquer dúvidas, definindo que o território da União Europeia engloba o território dos seus Estados membros, incluindo o respetivo espaço aéreo. E a Decisão (PESC) 2017/2074 do mesmo Conselho da União, também de 13 de novembro de 2017, relativa a medidas restritivas tendo em conta a situação na Venezuela e concretizando as disposições daquele Regulamento, explicita que “os Estados-Membros tomam as medidas necessárias para impedir a entrada no seu território ou o trânsito pelo mesmo de: a) Pessoas singulares responsáveis por violações graves dos direitos humanos ou pela repressão da sociedade civil e da oposição democrática na Venezuela; e b) Pessoas singulares cujas ações, políticas ou atividades de outro modo comprometam a democracia ou o Estado de direito na Venezuela”. As normas de direito comunitário em causa são, assim, absolutamente claras e inequívocas.
Ora, com o ministro espanhol Ábalos a “meter os pés pelas mãos” e a dar sucessivas versões do que ocorreu, a imprensa e a oposição espanhola (Partido Popular, Vox e Ciudadanos) pegaram no assunto e não têm parado de trazer a público novas revelações, qual delas a mais comprometedora para o governo de Madrid. Entre elas, o facto de, enquanto decorriam as conversações entre a vice-presidente venezuelana e o ministro espanhol, se terem descarregado do avião que aterrou em Madrid cerca de 40 malas, cujo conteúdo ainda não foi revelado, especulando-se que as mesmas poderiam conter dinheiro, diamantes, metais preciosos, drogas ou documentos comprometedores do financiamento por parte de Caracas quer do Partido Socialista espanhol quer dos seus sócios de governo do Podemos.
A questão que, todavia, suscita esta reflexão prende-se com o facto de no decurso das revelações que têm vindo a público, ter sido conhecida a rota do voo Caracas-Madrid efetuada pelo avião em causa. E soube-se, então, na passada semana, que o referido voo havia sobrevoado o espaço aéreo português – que, em sentido técnico, integra o território nacional segundo as regras de direito internacional público – pelo que, à face desse mesmo direito internacional, os mandatários venezuelanos que se encontram impedidos de entrar, circular, transitar ou cruzar território da União Europeia também violaram essa proibição transitando no território português quando sobrevoaram o nosso espaço aéreo – repetimos, dimensão inalienável do nosso território nacional.
A partir do conhecimento destes factos, e com base nas suprarreferidas normas de direito da União Europeia, impõem-se algumas questões a que o governo português não pode deixar de responder. Desde logo,
- foram as autoridades portuguesas notificadas do sobrevoo do nosso território pela referida aeronave?
- Em caso afirmativo, foram as autoridades nacionais informadas sobre quem eram os passageiros daquele voo?
- Se foram notificadas de ambas as situações, permitiram que colaboradores do regime venezuelano, impedidos de acederem a território Schengen transitassem pelo território nacional, em contravenção das decisões do Conselho de Ministros da União Europeia e do direito da União Europeia?
- Em caso negativo, se não foram notificadas da realização daquele voo ou dos ocupantes do mesmo, que iniciativas diplomáticas levou a cabo o governo português junto das autoridades venezuelanas para denunciar e protestar contra esta clara violação de disposições vinculativas adotadas pelo Conselho de Ministros da União Europeia?
As questões colocadas – pelo menos estas – assumem-se de crucial importância e devem ser colocadas e respondidas por parte do governo português, nomeadamente por parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Quando se apresta a exercer mais uma presidência rotativa do Conselho de Ministros da União Europeia, Portugal não se pode dar ao luxo de ignorar ou violar disposições jurídicas vinculativas adotadas naquela sede. E, no caso concreto da Venezuela, não pode haver qualquer margem para dúvida sobre o lado do qual Portugal se deve colocar, quando a opção é dar cobertura política ao braço direito do narco-regime sanguinário de Maduro e seus sicários ou estar do lado da generalidade dos Estados democráticos que continuam a reconhecer Juan Gaidó como o Presidente de jure da República venezuelana.
Há situações, na vida como na política, em que a transparência é uma exigência ética que não admite tergiversações.