Steiner (23 de abril 1929 – 3 de fevereiro de 2020) morreu no pas­sado dia 3 de fevereiro em Cambridge, aos 90 anos de idade.

Nascido em Neuilly-sur-Seine (Paris), era filho de pais judeus – ele checo e ela vienense – que haviam emigrado para França em 1924 quando o ambi­ente antissemita já prolife­rava na capital austríaca e não faltavam indícios de que a ascensão rápida do nacional-socialismo emergente poderia vir a constituir ameaça séria para a comunidade judaica radicada em Viena. Fu­gida ao perigo nazista, a família voltaria a ter de fugir da mesma ameaça em 1940 quando abandona França e se translada para Nova Iorque. George ti­nha apenas 11 anos e a consciência que esta nova fuga lhe poupara a vida. Anos mais tarde acabaria por reconhecer que o refúgio nos Estados Unidos lhe salvara a vida – a grande maioria dos seus colegas do Lycée Janson-de-Sailly acabaram mortos na sequên­cia da invasão de França pelos exércitos alemães. Os Estados Unidos acabaram por ser o seu segundo lar, o local onde Steiner cresceu, se formou e trabalhou antes do seu regresso à Eu­ropa, a essa mesma Europa da qual havia tido necessidade de fugir para salvar a sua vida.

A sua formação académica foi tributária da frequência das conceituadas universidades de Chicago, Harvard e, depois, Oxford.

Exerceu a sua docência fundamentalmente em Cambridge e em Genebra, sendo doutor honoris causa pela Universidade de Salamanca (2002).

Foi, essencialmente, um crítico literário, especialista em literatura compa­rada. Mas foi também um europeísta de exceção, defensor da cultura e das tradições europeias, e um observador atento da realidade do velho conti­nente – desse continente cheio de para­doxos e de contradições, onde o jardim de Goethe [fazia] fronteira com o [campo de extermínio de] Bu­chenwald”.

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Vivendo os últimos anos da sua vida no Reino Unido, refletiu inevitavel­mente sobre o Brexit. E na última entrevista que concedeu a um jornal por­tuguês, lamentava-se que o Brexit tenha arrancado da Europa a sua demo­cracia mais forte”, concretizando o seu pessimismo afirmando que “sabia que havia um perigo real, mas não pensei que fosse acontecer. Vou dizer-lhe o que se passa aqui: a Inglaterra cansou-se da História e quer ficar fora dela. Prefere ser uma nação mais pequena”. Paradoxalmente, morreu jul­gando ter assistido à morte da civilização — a ocidental — de que tanto gostava (Miguel Este­ves Cardoso), três dias depois do Reino Unido deixar a Europa da União. Coinci­dências tristes da história….

Talvez por isso não tenha perdido a dimensão triste que caracterizava a sua existência – “não, não estou em casa neste mundo. Ninguém da minha idade está. Vi­vemos demasi­ado. O verdadeiro crime é viver demasiado — e por esse crime declaro-me culpado. Mas não invejo os jovens, porque os es­peram tempos difíceis. É mesmo possível que depois do capitalismo sobre­venham outras formas de crise económica. Pode esta enorme dis­tância en­tre ricos e pobres manter-se? É sustentável, suportável? Não, é inconcebí­vel. E al­guma coisa vai acontecer”.

Estas reflexões, erigidas em preocupações, iam a par com um pensa­mento estruturado sobre a Europa que se materializou numa extraor­dinária “Ideia de Europa” [A Ideia de Europa, Gradiva, 2005] que foi deter­minante para a origem da minha própria “A Ideia de Europa” [Chiado Edi­tora, 2019] e que Steiner começa por abordar de uma forma ab­solutamente original e fasci­nante, percorrendo os cafés da Europa. Aí meditava que a “Eu­ropa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pes­soa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concen­trados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em In­gla­terra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na Amé­rica do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Or­leães. Dese­nhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos mar­cadores essenciais da “ideia de Europa””.

Fruto da sua própria vivência, e a par com as reflexões sobre a Europa e o seu destino, George Steiner meditou sobre o recrudescimento dos naciona­lismos [“assusta-me muito e tenho muito medo. O nacionalismo é um ve­neno ab­soluto”] e do antissemitismo, e a própria natureza do Estado de Is­rael, enquanto pátria política dos judeus. O seu juízo não era particular­mente benévolo – “o preço de Israel é o nacionalismo militarista. E esse é um preço muito elevado a pagar. Os israelitas têm todo o direito de contra­por: “Como não ser assim? O que podemos fazer?” Sinceramente, não sei”. E logo voltava a ilustrar o seu pensamento com a evocação de outro episó­dio da sua vida pessoal e pro­fissional – “há muitos anos, após a criação do Estado de Israel, foi-me oferecido um ex­celente cargo em Israel, para ajudar a começar a Universidade. E eu não fui, não conse­gui”. Gesto típico de quem vive uma vida plena de autenticidade e de coerência entre os princí­pios proclamados e as ações praticadas.

Em síntese, o europeísmo militante e contemporâneo está mais po­bre e a nossa cultura também. Pessoalmente, perdi uma das referências da minha formação europeia. Sinto-me, por isso, mais po­bre e menos acompanhado. Felizmente ficaram as suas obras, os seus li­vros, o seu exemplo. Que des­canse em paz.