Um rumor inquietante tem surgido no debate sobre incêndios em Portugal. Alguns investigadores sugerem que os bombeiros constituem parte do problema, por serem alegadamente financiados em função da área ardida. As declarações de Tiago Oliveira a este respeito no parlamento atiçaram esta controvérsia, com o repúdio da Associação Portuguesa de Bombeiros Voluntários, da Associação Nacional de Bombeiros Profissionais e da Associação Portuguesa de Municípios, explodindo a tensão destas com a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF).

Na base deste caso está a ideia de que os bombeiros beneficiam de um excesso de recursos dirigidos para a supressão de incêndios, que deveriam ser antes canalizados para a gestão florestal, nomeadamente no uso proativo do fogo para a queima de biomassa. Enquanto esta doutrina tem ganho visibilidade nos meios de comunicação social, a AGIF, presidida por Tiago Oliveira, tem sido particularmente vocal na defesa do que se designa por “fogo controlado”, gerando uma acesa polémica sobre o seu pretenso financiamento público.

A necessidade de investimento público e privado em medidas de silvicultura preventiva parece ser consensual, mas se estas medidas são complementares, atacar os meios de combate a incêndios numa lógica simplista de competição por recursos financeiros parece contraproducente. Num país em que nas últimas quatro décadas arderam quase dois terços do território, é difîcil sustentar que o problema está no excesso de meios de supressão.

Num contexto claramente deficitário em muitas vertentes, todas as ferramentas que possam contribuir para mais e melhor prevenção devem ser equacionadas, tendo em conta as especificidades locais, regionais e nacionais. Mas num contexto de expansão descontrolada de espécies adaptadas ao fogo, e de alterações climáticas com estações cada vez mais difusas e incertas, o apelo a fogos de inverno constitui uma abordagem tecnicamente discutível. Aquilo que para uns se assume como uma evidência, claramente não o é para outros.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os problemas relacionados com responsabilidade civil e impactos destas práticas, complicam este debate mais específico que não cabe aqui discutir. Mas é precisamente nesta especificidade técnica que se criam divisões entre diferentes actores-chave, que reclamam para si mesmos a capacidade de julgar os critérios que definem as regras de financiamento que estão agora em discussão.

Não podemos por isso ignorar que a crítica ao atual modelo de financiamento dos bombeiros esconde uma luta de poder simbólico onde se procura definir a legitimidade de cada grupo de interesse para impor diferentes racionalidades no sistema de gestão de riscos ambientais.

As nossa forças de combate a incêndios podem e devem ser melhoradas, mas a última coisa que Portugal precisa é de alimentar antagonismos no seio das nossas mais vitais instituições. As Organizações Humanitárias de Bombeiros constituem um capital social insubstituível, e os seus quadros devem sentir-se apoiados pela sociedade no seu todo. Quem vive a realidade dos incêndios na pele sabe as dificuldades porque passam muitas das nossas corporações, que chegam por vezes a ter que contrair empréstimos para pagar salários.

Depois do calamitoso incêndio da Serra da Estrela no ano passado evidenciar mais uma vez as enormes dificuldades em alterar a nossa condição de vulnerabilidade, manifestadas de forma mais aguda em 2017, há que ter consciência das graves limitações e ameaças que enfrentamos. No ano que agora decorre, as condições meteorológicas mais benignas não devem dar lugar a autoproclamações de competência, e ninguém deve ter um estatuto privilegiado para se assumir como árbitro para fazer prevalecer suas próprias teses.

Nunca foi tão necessário ao registo político em que estas lutas se travam o respeito pelo papel que cada um tem e deve ter neste debate. Ao contrário do que certos especialistas afirmam, não faz falta um “novo paradigma” fundamentado em qualquer modelo teórico e prático. Ao contrário, a sua imposição no sistema impossibilita construir uma terceira posição verdadeiramente ética e plural, capaz de acomodar a multiplicidade de valores presentes nas paisagens e nas causas ameaçadas que cada um vê e reconhece como suas.