1 O maior dos prodígios

Os campi universitários têm geralmente uma disposição dispersa e não é fácil identificar a sua entrada. Como diria o gato em Alice no País das Maravilhas, aquilo que entendermos como entrada vai depender do destino que procuramos. Mas isso não se aplica com precisão ao campus de Gualtar da Universidade do Minho, que grava no nosso imaginário uma entrada principal: a da estátua de Prometeu, prestando homenagem ao mito grego que castiga o titã por roubar o fogo aos deuses para o dar aos homens. O fogo era um exclusivo dos deuses e, ao oferecê-lo ao homem, Prometeu aproximava as duas condições – divina e humana –, num ato que não podia ser perdoado e que a academia não deve esquecer.

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É sempre surpreendente perceber como os antigos sabiam tanto, mesmo sem a base científica com que hoje observamos o mundo. Eles sabiam da importância do fogo tanto como hoje a reconhecemos na nossa evolução. Como diz Suzana Herculano-Houzel, em Deus Cérebro:

“Sem estas ferramentas, sem fogo, sem modificar a comida que comemos, não estaríamos aqui. Não teríamos energia suficiente para alimentar o cérebro que temos.”

Foi o fogo que nos tornou o que somos, e o que somos transformou o mundo à nossa volta – o que nos recorda um dos mais belos momentos da tragédia grega, quando, em Antígona, Sófocles coloca no Coro as seguintes palavras:

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“Muitos prodígios há; porém nenhum
maior do que o homem.”

O maior dos prodígios foi capaz de passar pelas vagas fundas do mar cinzento, trabalhar a terra “volvendo o arado, ano após ano” e usar o engenho para apanhar todos os animais, dominando “o cavalo de longas crinas” e vencendo “o touro indomável das alturas”; pensou em meios de evitar doenças invencíveis e a fala e “as normas que regulam as cidades sozinho aprendeu”. Parece que

“Ao Hades somente
não pode escapar.”

2 A tentação da húbris

Mas Sófocles termina a sua ode recordando as limitações da humanidade: o seu engenho constitui também a sua vulnerabilidade ou, como diz Maria Helena da Rocha Pereira,

“É que na própria grandeza o homem encontra a sua maior limitação: é preciso prezar as leis da terra e também a justiça divina, para subir bem alto na cidade (hypsipolis); quem assim não proceder, será «privado da cidade» (apolis).”

É este reconhecimento que nos chegará com a noção de húbris, uma aprendizagem sobre os nossos limites e o castigo que sucede ao desejo de igualar os deuses. Encontramos uma variação da mesma lição na tradição bíblica, com Eva e Adão a serem expulsos do paraíso por terem o comido o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. O conhecimento do bem e do mal estava reservado a Deus, mas os homens parecem ansiar permanentemente por uma nova condição.

Esta ânsia foi agravada no século das Luzes com as ideias que moldaram a nossa forma de pensar: por um lado, a crença no conhecimento e no seu poder; por outro, a convicção na perfetibilidade humana e no progresso. O ser humano estaria mais perto da libertação e a ciência representaria essa fé, com os desenvolvimentos na medicina, na produção de alimentos e na tecnologia a prometerem um mundo novo.

Recordemos o Grande Inquisidor de Dostoievski:

“Três poderes, três únicos poderes há capazes de conquistar e dominar para sempre a consciência desses pobres rebeldes, em benefício próprio: o milagre, o mistério e a autoridade.”

Em comentário, D. H. Lawrence sugere que a ciência responde a essas três ânsias: alimenta-nos com meios misteriosos e leva-nos a uma prostração maravilhada perante os seus feitos. É por essa razão que exerce um fascínio tão intenso sobre nós. Pensemos em como algumas pessoas levam a sério a colonização de Marte, ao ponto de se ofereceram como voluntários para uma viagem sem regresso. Ou na admiração, quase infantil, a que nos prestamos perante as maravilhas da inteligência artificial, e de como ela permitirá uma sociedade mais igualitária, seres humanos mais livres e um futuro mais glorioso (e por isso ouvimos, num misto de fascínio e terror, o podcast Máquinas que pensam todas as semanas). E há até quem anseie pela espantosa evolução tecnológica que será o voto eletrónico, capaz de resolver quase todos os problemas do regime democrático.

É esta delusão que John Gray critica em Sobre humanos e outros animais, quando defende que, ao aumentar o poder humano, a ciência se limita a amplificar as falhas da natureza humana. A nossa história parece estar mais próxima de Ícaro, que, inebriado pela condição alada que o aproximava dos deuses, esqueceu a lição sobre os seus limites. Ou, como diz Gray:

“O conhecimento não nos torna livres. Deixa-nos como sempre fomos, presas de toda a espécie de loucuras.”

3 A queda de Ícaro

O pensamento filosófico é, em certo sentido, também representativo da ânsia de divindade: afinal, não é a “homoiosis theoi” (tornar-se igual a deus) a finalidade da vida filosófica para Platão?

Já na vida do dia-a-dia é a nossa natureza mais irregular que se revela, entre a admiração pela capacidade de criação de Dédalo e a jocosa apreciação da queda de Ícaro. Se, por um segundo, somos levados a alimentar o sonho de nos tornarmos deuses, no segundo seguinte não resistimos à satisfação de assistir ao castigo inevitável.

Carlo Saraceni, The Fall of Icarus (séc. XVII)

Não é nada que nos deva envergonhar. Somos criaturas intermédias, ao mesmo tempo capazes do prodígio e vulneráveis a múltiplos vícios. Mas é essa condição que justifica a nossa obsessão com fatalidades como o naufrágio do Titanic, a implosão do submarino Titan ou o desaparecimento do veleiro Bayesian, que, tal como Ícaro, desapareceram entre as águas. Podemos condoer-nos com outras tragédias, mas são estas – as que tinham prometido a superação de todas as vulnerabilidades e a consagração de todas as inovações – que mais ecoam no nosso íntimo. Elas recordam-nos da nossa condição humana, nunca divina.