Apesar do sentimento de alívio que se sente com a vitória de Joe Biden, a verdade é que há ainda quem tenha o topete de defender Donald Trump. São pessoas que, certamente, já esqueceram o rol de malvadezas perpetradas pelo mafarrico ruivo. Eis, para refrescar memórias, algumas das obras de Trump menos conhecidas, mas nem por isso menos indignas para um Presidente:

1. No auge da primeira vaga da pandemia, enquanto os americanos tentam habituar-se às regras muito restritivas com que têm de viver, o presidente Trump é filmado a brindar e a beber cerveja com um grupo de motards. Embora lhe chamem a atenção para o facto de estar a transgredir, Trump desvaloriza com indiferença. Mais tarde, questionado por jornalistas sobre as restrições impostas nas idas à praia, o presidente Trump diz que já tem “um esquema” para furar as regras;

2. Em Junho de 2017 ocorre um assalto aos paióis do Fort Huachuca, uma base militar no estado do Arizona. Os ladrões levam armas e munições, num roubo patético de tão fácil que foi. As armas acabam por ser encontradas, numa conspiração obscura encoberta pelo Secretário da Defesa. Apesar de tudo, Trump continua a apoiá-lo e a negar que tenha havido qualquer comportamento impróprio, chegando mesmo a ironizar sobre a acusação judicial que entretanto lhe é movida;

3. Nunca criticou um seu antecessor acusado de graves crimes de corrupção e de favorecimento de empresas milionárias. Aliás, reabilitou e chamou à sua Administração inúmeros ex-colegas do corrupto (ele próprio também é), que se mantêm calados como se não tivessem estado presentes enquanto eram cometidos crimes contra o erário público americano;

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4. Dias depois dos incêndios de Big Rock, no Kentucky, estando o povo americano ainda em choque perante uma das maiores tragédias recentes nos EUA, Donald Trump vai de férias. Mas não sem antes organizar um focus group para avaliar se a sua popularidade foi afectada pela calamidade. Anos mais tarde, durante uma acção de campanha eleitoral, tenta bater num idoso que o acusa de ter estado de férias durante os incêndios e não logo após. Trump não aprecia velhinhos imprecisos;

5. Entretanto, descobre-se que o sistema de telecomunicações usado pelos bombeiros e outros serviços de emergência, que falhou redondamente durante os tais incêndios, havia sido negociado por Donald Trump anos antes de ser presidente.

Bom, por esta altura o leitor já percebeu o que se passa aqui. Estou a elencar feitos de António Costa e de Marcelo Rebelo de Sousa como se fossem de Donald Trump, mostrando que somos exigentes com um presidente de um país que não é Portugal e complacentes com quem, na realidade, manda no país. Está a ver onde quero chegar, certo? Mas isto é tão divertido – e fácil! – que não resisto a acrescentar mais uns casos:

6. Uma das representantes republicanas que maior apoio presta a Trump no Congresso é considerada culpada de ter falsificado um documento, com o objectivo de se candidatar ilegitimamente a subsídios, lesando o Estado Federal. O marido da congressista, ex-Mayor republicano, perdeu recentemente o cargo, depois de se descobrir que usara contratos camarários para beneficiar uma empresa do próprio pai. Apesar disso, Trump não lhe renega o apoio. Aliás, nem nunca se refere ao caso. A congressista continua, alegremente, a representar o Partido Republicano em vários debates;

7. Sem razão aparente e invocando uma regra de limitação de mandatos que não existe na Constituição, Trump substitui a Procuradora-Geral da República, que tinha o péssimo hábito de investigar membros do círculo privado do presidente;

8. Faz o mesmo com o presidente do Tribunal de Contas, depois de este ter criticado Trump por querer flexibilizar a lei de contratação pública, potenciando a corrupção. Substitui-o por alguém que, no passado, mostrou ser um facilitador das vontades do Poder Político;

9. Trump não nomeia uma jurista para representar os EUA num organismo da ONU, apesar de ter ganho o concurso e sido escolhida por um júri internacional. Trata-se de uma jurista que encabeçou investigações incómodas para a Administração Trump. No seu lugar, é nomeado um amigo da Secretária da Justiça;

Isto deve ser suficiente para demonstrar o meu ponto de vista. Mas deixem-me só despachar mais estas:

10. Sem ganhar eleições, o filho de Trump torna-se Mayor de uma localidade perto de Washington, depois de o anterior Mayor ser cooptado pelo Partido Republicano para um lugar no Congresso;

11. Numa altura em que parece que a pandemia está controlada, Trump anuncia, em conferência de imprensa fanfarrona, que a fase final do Campeonato Mundial de Futebol vai ser realizada em Nova Iorque, uma das cidades mais afectadas, como prémio aos profissionais de saúde. Os profissionais de saúde ficam furiosos por, em primeiro lugar, preferirem aumentos salariais e melhoria de condições de trabalho; em segundo lugar, temerem que os ajuntamentos decorrentes dos jogos contribuam para a propagação do vírus;

12. Depois de meses em que todos os especialistas avisaram repetidamente para a chegada de uma segunda vaga de Covid, Trump dá uma entrevista onde explica que não estava à espera da segunda vaga de Covid. Ao que tudo indica, o coronavírus tinha combinado chegar na transição Outono/Inverno e, ao contrário de outros vírus, mais confiáveis, apareceu antes.

De facto, é curioso notar que, vertidas para a realidade americana, as acções dos nossos dirigentes deixam de ser pífias marotices e ganham logo outra dimensão de desfaçatez e incúria. Fossem americanos e cobertos pela CNN, Costa e Marcelo teriam outro destaque. E muito mais memes giros.

Não estou a dizer que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa são iguais a Trump. É evidente que não são, não temos esse azar. Mas também é cada vez mais evidente que não temos a sorte de serem iguais a Roosevelt, a Kennedy, a Reagan ou a Obama. Nem sequer a George W. Bush ou Bill Clinton.

Donald Trump dá muito jeito. Como todo o seu comportamento é grotesco, ao seu lado os outros líderes parecem verdadeiros estadistas. Sucede que, se tudo o que Trump faz é inconcebível, nem tudo o que é inconcebível é feito por Trump. Pode não parecer, mas sobra um bocadinho de inconcebível para o nosso cantinho lusitano. Nós é que optamos por não ver. Enxergamos com muita perspicácia o cisco no olho dos americanos, mas ignoramos olimpicamente a trave no nosso.