1. Não vi em direto o primeiro debate entre Hillary Clinton e Donald Trump. Vi-o calmamente no dia seguinte de manhã. Disse calmamente? Bom, calmamente é um exagero, porque em boa verdade estive a ponto de atirar coisas à televisão.
Sim, Hillary esteve brilhante, a espetar com uma elegância e frieza admiráveis farpas dolorosas em Trump. Mas por outro lado tivemos Trump a interromper cinquenta vezes Hillary, estratégia que os homens machistas (assumidos ou em negação) usam de cada vez que discutem algo com uma mulher. Não há mulher nenhuma neste mundo ocidental, livre, moderno e igualitário que não tenha a experiência múltipla de ser interrompida a despropósito por um homem para este proferir umas tantas vacuidades que julga mais interessantes do que qualquer opinião fundamentada que uma mulher pode apresentar. E não conheço nenhuma mulher (que não tenha o autorrespeito avariado) que não se lembrasse das suas experiências, não empatizasse com a situação e não considerasse ofensivo e boçal o comportamento de Trump. Os media e as redes sociais explodiram com este tema.
Donde: não consegui não ver em direto os dois debates seguintes. Aproveitei não ter de levar as minhas crianças às aulas nos dias a seguir e fiquei de plantão em solidariedade com uma mulher que seria atacada por um misógino básico. Fiz muito bem, porque os debates foram notáveis. Clinton imperturbável e elegante a lançar cascas de banana para Trump escorregar – e Trump a dar estrepitosas quedas acrobáticas, seguidas de fraturas expostas, a cada uma delas.
Claro, Trump também se embaraçou sozinho. Prometeu prender a sua opositora. Não garantiu aceitar os resultados das eleições. Desconsiderou o fraco crescimento americano com o argumento de que China e Índia cresciam muito mais. (E não o fez sustentado nas críticas académicas à ideia de Samuelson de que a taxa de crescimento diminui à medida que um país se desenvolve; foi mesmo por limitação intelectual.) Até tentou culpar Hillary pelos seus próprios atos de aproveitar meios legais para não pagar impostos federais – porque todos sabemos desde Eva que a culpa de tudo é das mulheres, mesmo dos atos dos sucessores de Adão.
O clímax veio no terceiro debate, quando chamou ‘nasty woman’ (‘mulher detestável’) a Hillary. Para Trump e a sua corte de seguidores sexistas, foi uma forma genial de por a contraparte feminina no seu lugar. Como dizia um congressista republicano, ‘às vezes uma senhora precisa que lhe digam que está a ser nasty’. (Não é adorável? Ainda bem que existem estes homens beneméritos e esclarecidos para nos darem ralhetes. Só espero que nenhuma senhora que se cruze com esta pessoa nos próximos tempos não lhe entorne em cima da roupa, por azar, um copo daqueles cafés que os americanos bebem a escaldar. Seria uma grande pena.)
Para o resto do mundo com noções de decência em funcionamento, em geral, e para as mulheres, em particular, o ‘nasty woman’ funcionou como uma declaração de guerra. Além do barulho nos media com o insulto, as mulheres correram para o twitter proclamando-se nasty. Já há há t-shirts à venda e demais parafernália. Porque, de facto, já fomos todas nasty. Não por atos desagradáveis ou imorais, mas pela ousadia de questionarmos homens que não entendem como não somos só produtoras de elogios e salamaleques. Acontece-nos muito. Temos orgulho em ser assim nasty. Tanto que até a Teen Vogue – muito mais afiada do que muitos comentadores masculinos por esse mundo fora, mesmo os que desgostam de Trump, que não estão a perceber a magnitude da repugnância que a criatura gera nas mulheres – sugeriu que o comentário tinha acabado de ganhar a eleição a Hillary.
Isto tudo para dizer que estou com esperança. Textos refletindo como Hillary está muito mais perto que Trump das minhas posições em defesa do comércio livre – assunto em que não aceito compromissos nem balelas irrealistas – ficam para depois. Agora resta-me desejar que o eleitorado feminino (incluindo o das mulheres brancas com educação superior, que vota com frequência GOP e este ano apoia Hillary ao som de dois terços) seja instrumental a oferecer uma aparatosa derrota a Trump. Seria bonito e tremendamente pedagógico. E não só para o candidato perdedor.
2. Não resisto a escrever uma pequena nota sobre as indecorosas inovações da geringonça à lei das rendas. Depois de tirarem o ganha-pão aos senhorios impedindo-os de atualizarem as rendas (anteriores a 1990 e ainda hoje de valores risíveis) por mais cinco anos, o PS quer agora dar subsídios aos senhorios pobres. Ah tão generosos e magnânimos que são. Façamos reverências aos portadores de tamanha bondade. Em suma: esmifram a possibilidade dos senhorios adquirirem rendimentos por si próprios, de forma legítima, através do arrendamento da sua propriedade com rendas minimamente decentes; aumentam o IMI sobre as suas casas (é só estarem virados a sul ou terem uma vista catita); no fim, dão-lhes umas esmolas, esperando que fiquem submissos e penhoradamente agradecidos, preferencialmente de lágrima comovida no olho (e mão no boletim de voto) perante tal prodigalidade do PS. A solução evidente de deixar o mercado funcionar e subsidiar os inquilinos que comprovadamente não tenham meios para pagar as rendas não lhes ocorre: é demasiado simples e justa. Preferem passar com um bulldozer por cima da liberdade e da iniciativa dos proprietários, esbulhá-los com impostos e, a seguir, torná-los dependentes das esmolas do estado. Bom, é uma descrição aprimorada do socialismo. Só faltou António Costa anunciar tudo isto na TV com um fato de treino à Maduro.