No contexto da chamada Primavera Árabe, iniciada na Tunísia, em Dezembro de 2010, marcada por manifestações e protestos populares, que rapidamente se propagou aos países do Norte de África e do Médio Oriente, a Líbia iria ser atingida por todo este movimento de contestação, logo no ano seguinte, que levaria à eclosão de uma guerra civil, abrindo espaço a uma intervenção militar estrangeira, e na morte do seu líder, Muammar Kaddafi, ocorrida a 20 de Outubro de 2011. Uma das principais consequências desta acção, acabaria por ser a proliferação de grupos armados e o consequente alastramento da violência e instabilidade por todo o território, com um lamentável registo de dezenas de milhares de vítimas mortais, desde o início da crise. Sob o ponto de vista económico, a queda da produção petrolífera, resultante das disputas territoriais, num país com as maiores reservas do continente africano, viria a revelar-se de enorme dramatismo.
Volvidos quase nove anos, após a morte de Kaddafi, e a consequente queda do regime, o povo líbio continua a viver em ambiente de violento conflito armado. Nos nossos dias, com o aparecimento da pandemia do COVID-19, a situação sanitária, já de si extremamente delicada, levou naturalmente, a um apelo generalizado, interno e externo, no sentido de se pôr termo às hostilidades entre as partes em contenda, de modo a ser evitada uma propagação descontrolada do vírus. Estes apelos resultaram num acordo de cessar-fogo, assinado a 21 de Março, último. Todavia, foram inúmeros os relatos de sucessivas violações protagonizadas pelas partes em confronto, logo nos dias que se seguiram a este compromisso.
Num cenário de aparente alheamento da Comunidade Internacional, as Nações Unidas (ONU) ensaiaram esforços para mediar a situação. Todavia, até ao momento, sem qualquer efeito prático. O próprio Hammude Ahmad as-Seyyale, Presidente do Parlamento líbio, acabaria mesmo por acusar a ONU de manter silêncio sobre os ataques das milícias ligadas ao marechal Khalifa Hafter, que têm vitimado inúmeros civis, na capital, Trípoli. O actual governo enfrenta, igualmente, problemas nos espaços fronteiriços, particularmente ao sul do território, através dos quais tem havido um preocupante incremento do tráfico e contrabando de materiais ilícitos e armas [1]. A nova pandemia do COVID-19 poderá, ironicamente, mostrar-se mais influente e eficaz na busca de uma solução para este arrastado conflito, do que a acção da Comunidade Internacional, e, em particular, a da União Europeia.
Neste momento, existe um governo democraticamente eleito, em 2014, a Câmara dos Deputados, reconhecido internacionalmente como o “Governo da Líbia”, que, todavia, enfrenta a oposição do marechal Hafter, líder do autoproclamado Exército Nacional Líbio, e, também, de outros grupos jihadistas ou de âmbito tribal, que controlam já partes do território. Apesar de os principais contendores terem chegado a um princípio de acordo, em Dezembro de 2015, certo é que, até aos nossos dias, o conflito parece não conhecer desenvolvimentos favoráveis, mantendo-se uma acesa e violenta disputa territorial, numa altura em que Hafter, que conta com o apoio, nomeadamente do Egipto, dos Emirados Árabes Unidos e da Rússia, anunciou ao mundo ter já assumido o controlo político do país [2].
Num quadro geoestratégico cada vez mais complexo e disputado, surgem novos e velhos actores apostados num posicionamento do qual possam retirar largos dividendos. Tal é o caso da Turquia, motivada pelo desejo de competir regionalmente com a influência do Qatar, dos Emirados Árabes Unidos, do Egipto e da Arábia Saudita [3].
Desde 2014, o país encontra-se dividido entre administrações rivais, em Trípoli e em Benghazi. Da sua parte, Haftar continua a sua campanha de bombardeamentos à capital, contando para isso com o apoio dos Emirados Árabes Unidos, do Egipto e da Rússia, apresentando-se sempre como a solução para a estabilização e o progresso do país.
Entretanto, a Covid-19 pôs a claro, com o registo de vários casos de contágio, os nefastos efeitos da guerra civil no combate à pandemia, revelando a falta de infraestruturas e de um sistema de saúde incapaz de responder minimamente às exigências. Na verdade, o conflito líbio parece ser uma consequência das aspirações das grandes potências regionais, ao mesmo tempo que a Europa, algo dividida relativamente à questão líbia, parece indiferente à profunda crise vivida na região, esquecendo até o perigo que tal cenário representa para o continente europeu. Nem mesmo a Cimeira da Líbia, em Berlim, patrocinada pelo governo alemão, com a finalidade de contribuir para a estabilidade da região, parece ter alcançado os seus mais optimistas propósitos. De resto, para um largo sector da política alemã, o governo de Merkel está longe de ser um mediador credível, tendo em conta o continuado fornecimento de armamento às partes envolvidas no conflito. Neste domínio, também a Turquia e a Rússia, em particular, têm desempenhado um papel relevante, sempre na expectativa de beneficiarem de futuros acordos comerciais com a Líbia. De resto, o país transformou-se num indesejável espaço de disputa entre potências mundiais e regionais, sempre em defesa de interesses próprios. Aparentemente, a Comunidade Internacional tem virado a sua atenção para os conflitos na Síria e no Iémen, esquecendo a importância estratégica que a Líbia representa para os interesses europeus, no domínio das migrações, e para o equilíbrio geoestratégico da região [4], onde as perspectivas de solução política são reduzidas, tendo em conta as profundas divisões políticas e tribais do país, com histórias políticas e económicas bem diversas. Alguma da intervenção internacional, a pretexto de contribuir para a promoção da paz, mais não tem feito do que abrir espaço à violação dos embargos de armas decretados pelas Nações Unidas, dando, ao mesmo tempo, lugar à criação de um corredor financeiro que tem como destinatários grupos rivais, e o incitamento à violência. Objectivamente, as tentativas de alguns actores internacionais no sentido da reconciliação, às quais chamam [eufemisticamente] Conferências de Paz, têm fracassado, devido a uma manifesta ausência de neutralidade, e de uma efectiva participação no conflito. Nesse sentido, o empenhamento das várias instituições locais será fundamental para o sucesso de uma transição que se deseja justa e construtiva, de modo a reduzir ou mesmo eliminar a polarização e a violência, e a promover um verdadeiro Estado de direito [5]. O conflito líbio é, de resto, mais um exemplo do que sucede quando os líderes ocidentais ignoram a sua existência. No actual contexto, mais do que nunca parece caber ao povo líbio a construção do seu próprio destino.
Lisboa, 1 de Junho de 2020
[1] United States Institute of Peace, 24 de Março de 2020.
[2] EFE, 28 de Abril de 2020
[3] United States Institute of Peace, 24 de Março de 2020
[4] The Spectator, 20 de Maio de 2020.
[5] The United States Institute of Peace, 20 de Março de 2020.