Amplamente divulgado, o restabelecimento de um Califado Universal surge como o supremo objectivo das organizações jihadistas internacionais, que consideram ser, tal como o fundador da Irmandade Muçulmana, Hassan al-Banna1, um “símbolo da unidade islâmica”. Aparentemente, este propósito ter-se-á frustrado com o hipotético enfraquecimento da Al Qaeda, logo após a morte do seu líder, Osama bin Laden, em 2011, e, mais recentemente, com a derrota do Daesh, nos territórios sírio e iraquiano, a partir dos quais este grupo pretendia criar o núcleo do Califado e a sua expansão global, com base na queda sucessiva de todos os Estados considerados apóstatas.

No caso do Daesh, enquanto organização insurgente, uma das particularidades patente, sob o ponto de vista militar, é a sua enorme preparação e disciplina, recorrendo a tácticas comparáveis às de uma força regular, o que lhe confere uma considerável eficácia no terreno, com acções de grande impacto e altamente letais2. Na verdade, só o desconhecimento da enorme capacidade de adaptação deste tipo de organizações às múltiplas adversidades e contextos securitários, poderá dar espaço a uma atitude de natureza mais optimista por parte daqueles que consideram estar para breve a sua extinção. Objectivamente, o registo histórico das últimas duas décadas mostra-nos que a sua determinação é inabalável, e que não obedece a qualquer tipo de limitação, incluindo a geográfica. Para isso, contam com a fidelidade e colaboração de variadíssimos grupos seus afiliados, dispersos por todos os continentes. Foi, assim, que depois de ter perdido o território que detinha no Iraque e na Síria, o Daesh  procurou expandir rapidamente a sua influência para novos espaços geográficos, concentrando esforços e oferecendo apoio a grupos militantes islâmicos locais, que lhe juraram lealdade. África passou, assim, a revelar-se como um continente onde a organização poderia prosperar e manter vivo o sonho do Califado Universal. Foi neste contexto de expansão que o Daesh reconheceu como seu afiliado o grupo Ansar al-Sunna, que, a partir de 2019, passou a integrar o ramo centro-africano da organização terrorista, o Islamic State Central Africa Province (ISCAP)3.

Análise

O potencial económico de Moçambique tem atraído, em particular ao longo dos últimos anos, significativos investimentos em variados sectores. Com recursos geológicos particularmente importantes, as reservas de gás natural, uma das maiores do continente africano, com uma forte concentração num raio geográfico pequeno, passaram a dominar as atenções de destacados grupos económicos internacionais. Perto de Cabo Delgado, a Bacia do Rovuma é uma das regiões mais significativas, a nível mundial, na exploração de gás natural, sendo aí que se concentram várias empresas estrangeiras que operam na exploração de recursos naturais, a coberto de licenças governamentais. Foi nesta região que, em 2010, ocorreram as maiores descobertas de gás natural das últimas décadas4, que viriam a dar lugar à assinatura de um acordo, em 2019, entre o governo moçambicano e o consórcio Rovuma Venture para a exploração de gás natural. Todavia, a presença de células jihadistas no norte do país tem funcionado como um importante obstáculo à tão desejada concretização de projectos que se relacionam com o desenvolvimento sustentável de Moçambique.

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O Ansar al-Sunna5, que teve o seu início como uma organização religiosa em 2015, e que só mais tarde viria a militarizar-se, é um grupo terrorista jihadista que actua na província de Cabo Delgado, no nordeste de Moçambique, onde foi formado com o objectivo de estabelecer um Estado Islâmico, em toda a região6. Para o efeito, tem contado com o apoio do crime organizado, e de recursos financeiros provenientes do contrabando, de redes religiosas e do tráfico de pessoas, muitas das quais são enviadas como recrutas para campos de treino militar e ideológico, instalados em diversos países do continente africano, nomeadamente, Tanzânia, Quénia e Somália7. Apesar de integrar militantes, sobretudo da Tanzânia e da Somália, o grupo é, essencialmente, constituído por jovens muçulmanos originários de distritos da província de Cabo Delgado, de forte tradição islâmica, que enfrentam elevadas taxas de desemprego e um futuro cada vez mais incerto. Esta vulnerabilidade, a par da promessa de um efectivo apoio financeiro e da sedutora retórica jihadista, faz deste estrato populacional um alvo fácil de recrutamento. É de crer, entretanto, que os líderes do grupo mantenham fortes ligações de natureza religiosa e militar com outros grupos fundamentalistas do Quénia, da Tanzânia, da região dos Grandes Lagos e da Somália.

A primeira série de ataques do grupo, particularmente violentos, teve lugar na vila de Mocímboa da Praia, em Outubro de 2017, tendo atingido elevadas proporções, pouco tempo depois, em Maio de 2018, com um registo de 16 mortos entre os jihadistas e as forças governamentais, iniciativa prontamente reivindicada pelo Daesh. Estas acções visaram não somente estruturas municipais, como as próprias comunidades locais. Apesar da mobilização de um  dispositivo policial e militar para toda a província e região Norte de Moçambique, a violência não tem abrandado, o que provocou já a fuga de mais de 160 mil pessoas de um cenário de guerrilha, onde, aparentemente, o principal objectivo dos jihadistas parece ser o do estabelecimento de um Estado Islâmico na região. Na verdade, os analistas internacionais continuam hesitantes quanto aos genuínos objectivos do grupo. Se para uns, estes assentam, essencialmente, na componente religiosa, em associação a questões de natureza étnica, para outros, tudo não passa de propósitos puramente criminosos, a coberto de pretensas razões ideológicas, sempre ligados à componente financeira, expressa e materializada por via de assaltos, extorsões e sequestros. É considerada, ainda, a possibilidade de existência de uma parceria estratégica entre o terrorismo jihadista e o crime organizado, que inclui o contrabando de cocaína, de pedras preciosas e de armas, para além do tráfico de seres humanos. Aexemplo, de resto, do que tem vindo a acontecer em diferentes territórios situados abaixo da região do Sahel. Não havendo unanimidade, domina, contudo, a tese que sugere haver razões de natureza ideológica aplicáveis a uma região que, ainda que seja considerada a mais pobre de Moçambique é, igualmente, a mais rica em minerais e gás natural, estando a beneficiar de avultados investimentos de empresas multinacionais, como são os casos da norte-americana Exxon Mobil, da italiana ENI e da francesa Total, que apostam na exploração de uma reserva de gás natural que poderá vir a ser considerada como a maior de África8.

Foi neste cenário que entre a população local reinava a convicção de reais melhorias nas suas dramáticas condições de vida. Todavia, tal não se tem verificado, levando mesmo a fugas em massa, devidas ao crescendo de violência por parte das células armadas. Em resposta, o governo moçambicano recorreu aos serviços do Grupo Wagner9, que deslocou para a região, em 2019, duas centenas de mercenários bem equipados. Todavia, este grupo de mercenários, apesar de impor aos jihadistas derrotas pontuais, foi incapaz de os derrotar totalmente, o que resultou no fim das suas acções no início de 2020. Tudo isto numa altura em que o Ministério da Defesa de Moçambique é acusado de receber dinheiro de duas empresas petrolíferas, a Anadarko, substituída, entretanto, pela Total, e a ENI, para garantir com os seus soldados a segurança dos projectos de gás natural, em Cabo Delgado, tendo mesmo sido processados dois jornalistas por, alegadamente, terem divulgado “segredos de Estado”10.

Considerações finais

Face ao flagelo a que a população civil tem vindo a ser sujeita desde 2017, só recentemente a liderança moçambicana reconheceu, através do seu Conselho Nacional de Segurança, como sendo uma ameaça terrorista os acontecimentos trágicos de Cabo Delgado. De acordo com o mais recente relatório do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED)11, os jihadistas têm protagonizado em toda a região nordeste do país variadíssimas acções, mesmo em áreas que foram recentemente alvo da intervenção de forças governamentais. Ainda em conformidade com o documento, os terroristas têm intensificado os seus ataques ao longo de 2020, com mais de uma centena de ataques violentos, o que significa um aumento de 300% relativamente ao período homólogo de 2019. Cerca de 90 dessas acções, resultaram na morte de mais de 200 elementos da população civil, incluindo um ataque particularmente mortal, em Abril último, que vitimou 52 civis, alguns dos quais foram decapitados por se terem recusado a integrar a milícia. Esta continua a beneficiar de uma aparente incapacidade do governo em estabelecer uma segurança efectiva em toda a região e em promover uma real melhoria das condições de vida da população, numa altura em que é cada vez maior o número de relatos da população, alertando para o facto de estar a ser alvo de extorsão por parte dos militares das Forças de Defesa e Segurança (FDS). Um alerta, aliás, que levou já o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, a anunciar a atribuição de bónus aos elementos das FDS enviados em missão para Cabo Delgado12.

A grave situação vivida em Moçambique levou, entretanto, as autoridades a solicitar apoio internacional, após ter falhado o recurso a empresas privadas militarizadas, como foi o caso do Grupo Wagner. Entretanto, Portugal, através do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, anunciou já a sua disponibilidade para “integrar uma força internacional contra ataques terroristas”, numa região onde vivem duas centenas de cidadãos portugueses13. Por outro lado, a Southern African Development Community (SADC), a quem cabe a responsabilidade de garantir a estabilidade regional, dá sinais de não ter um plano claro sobre a forma como responder ao apelo dos líderes moçambicanos e que conduza à erradicação dos jihadistas do seu território14. Certo é que, a exemplo de outros conflitos regionais, também para este, a solução residirá num genuíno e efectivo compromisso da comunidade internacional, considerando a premente necessidade de reposição da estabilidade social e política numa região onde significativos investimentos internacionais estão sob uma crescente ameaça terrorista.

(1) (1906-1949) Líder religioso egípcio, sunita.
(2) II CONGRESO ADESyD “Compartiendo (visiones de) Seguridad”. Disponível aqui.
(3) CENTER FOR GLOBAL POLICY (CGP). Disponível aqui.
(4) DEUTSCHE WELLE, 29 de Maio de 2020.
(5) Também conhecido como Ahlu Sunnah Wa-Jamo (ASWJ), Ansar al-Sunna e Al-Shabaab.
(6) Islamic Theology of Counter Terrorism (ITCT).
(7) BBC NEWS, 2 de Junho de 2018.
(8) The Economist, 27 de Outubro de 2018.
(9) Trata-se de uma organização paramilitar de origem russa, considerada uma das maiores em todo o mundo, que tem actuado em várias regiões, entre as quais Ucrânia, Médio Oriente e continente africano, tendo sido fundada, em 2007, por um ex-oficial do exército russo, Dmitriy Valeryevich Utkin (nome de guerra, Wagner). O grupo integra veteranos de guerra russos e voluntários oriundos de diversas regiões.
(10) PÚBLICO, 25 de Junho de 2020.
(11) Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED). Disponível aqui.
(12) Disponível aqui.
(13) AGÊNCIA LUSA, 19 de Junho de 2020.
(14) MAREFA.ORG. Disponível aqui.