1. A diferença tornou-se-me óbvia num consultório veterinário. No início algo parecia estranho, fora de sítio. O veterinário tocava no animal. Apalpava-o. Via-lhe os olhos, os dentes, as orelhas, as patas. Tocava-lhe uma e outra vez. De repente, fez-se um clique e percebi o que ali me surpreendia: há quanto tempo não têm os humanos uma consulta assim? Uma consulta em que o médico os olhe e lhes toque? E não, a culpa não é apenas do monitor do computador em volta do qual giram agora as consultas médicas (nesta matéria do computador como protagonista principal da consulta, público e privado não se distinguem).

A verdade é que a nossa relação com o corpo humano é cada vez mais desumana. E nada como ir a um consultório veterinário para o constatar: ali não há medo de tocar, nojo dos vómitos, nem horror a ter de limpar um animal incontinente. As pessoas lidam actualmente com muito mais naturalidade com o corpo dos seus cães e gatos do que com o dos seus familiares.

A própria linguagem acusa esta humanização dos animais e desumanização dos humanos: ao mesmo tempo que num consultório veterinário ou num jardim é cada vez mais difícil marcar que gostando nós muito do nosso animal ele é isso mesmo – um animal e não o “nosso rapaz” ou “a menina” – criou-se para os humanos um Estatuto do Cuidador Informal que se não tivermos atenção acabará com as referências a pais, filhos, mães, irmãos… transformando-nos a todos em assépticos cuidadores. O apagar do parentesco ou a sua transformação numa ficção ideológica – crianças com duas mães ou dois pais no seu registo de filiação – é um reflexo desse presente desencontro entre o corpo humano e a ideologia.

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