De acordo com os dados utilizados pelo novo “Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem Abrigo” existiam em Lisboa, à data de dezembro de 2022, 3138 pessoas em situação de sem abrigo, 394 das quais vivendo na rua. Estes valores parecem pequenos e situações idênticas são reportadas em quase todos os países democráticos. As duas freguesias de Lisboa onde mais pernoitam de forma irregular, são Arroios e Parque das Nações. Estes números, a serem rigorosos, são enganadores.

Sabemos que o flagelo dos “sem abrigo” nunca desaparece por inteiro, nem nas sociedades cujos sistemas de segurança social foram desenhados para assegurar a sua erradicação fornecendo teto e alimentação, nem nos regimes autoritários que sempre reprimiram a sua existência. Excluídos pelos azares da sorte ou por um conjunto de más escolhas ao longo da vida, não deixam por isso de ser cidadãos, apesar de o não assumirem por inteiro.

Muitos dos “sem abrigo” de Lisboa concentram-se na Gare do Oriente. Nesta complexa mistura de beleza arquitetónica com disfuncionalidade, que se ergue elegantemente ao céu, existem em abundância no seu interior zonas sombrias, abrigos temporários, e esconderijos. Não transmite o conforto e a segurança que todos têm o direito de esperar de uma estação ferroviária atravessada diariamente por muitos milhares de pessoas. É o foco de um problema que se alastra às zonas vizinhas como uma mancha de óleo.

A estrutura arquitetónica que ao longe sugere grandeza e elevação de espírito, apresenta, se nos aproximamos, um espetáculo dantesco de degradação humana e de desintegração social. Abundam os dejetos que exalam um cheiro nauseabundo e as áreas ocupadas são cada vez maiores. Amontoa-se lixo. Numa situação que está descontrolada, grupos de “sem abrigo” estendem-se para fora da Gare e ocupam as entradas e, muitas vezes, o interior de edifícios das ruas próximas. Defecam em áreas de entrada dos edifícios. Nas redes sociais multiplicam-se os “posts” por vezes com fotografias elucidativas.

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São muitos os caminhos que conduzem ao estado de “sem abrigo”. Um estudo recente realizado em Portugal, evoca a existência de fatores relacionadas com a saúde, a depressão, a viciação, a falta de suporte social, a exploração sexual, a falta de amor próprio e o desespero. Apesar de a situação de “sem abrigo” ser muitas vezes temporária, o retorno ao mercado de trabalho e à família, quando existe, é sempre muito difícil e instável, e a disponibilização de um abrigo não é muitas vezes suficiente se bem que sempre necessária.

Os principais obstáculos identificados para a reintegração social são o abuso do álcool e de drogas, problemas graves de saúde mental e a deficiência física. A este quadro somam-se dois fatores: a maior utilização de drogas duras cuja desabituação é muito difícil, e a pressão migratória que contribuem para amplificar o efetivo de pessoas destituídas de relações familiares e profissionais. Os dois fatores têm grande potencial de amplificação.

Apesar das respostas insuficientes dos sistemas de apoio, os “sem abrigo” não têm o direito de ocupar os espaços públicos e privados, degradá-los, exibir a imundície, espalhar a sujidade e transmitir medo. Muitos dos afetados apresentaram já queixa às autoridades não obtendo qualquer resultado palpável. As intervenções policiais, pela sua natureza, para pouco servem e, a prazo, têm-se revelado inúteis. As ações pontuais quando ocorrem não têm efeitos duradouros. A situação é ainda mais incompreensível no que respeita à Gare do Oriente porque existe uma esquadra da Polícia de Segurança Pública na própria estação. Não é seguramente o desconhecimento que tem conduzido à inação.

Sejamos claros: a resolução de problemas deste tipo não devia depender do volume de queixas num qualquer portal da Junta de Freguesia, da Câmara Municipal ou de qualquer força da ordem ou mesmo da agitação nas redes sociais. As famílias que habitam nesta área do Parque das Nações têm o direito de esperar que estas instituições acompanhem no seu dia-a-dia a vida da cidade, e não permitam que se atinja a situação extrema que hoje se conhece. Espera-se que tanto os municípios como as juntas de freguesia sintam como seus os problemas da cidade.

Deixar continuar a degradação é praticamente um crime. E, tal como no quase homónimo livro de Agatha Christie, não haverá só um culpado. Mas não é a olhar para o lado que se resolvem problemas. Exige-se que quem tem responsabilidades as assuma por inteiro. Com respeito pelos “sem abrigo”, mas com ainda mais respeito pelos outros cidadãos.

Podemos ter esperança que o novo “Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem Abrigo” irá ter bons resultados, apesar de o número de “sem abrigo” ter crescido desde a aplicação dum plano anterior, com o mesmo nome, e que se acreditou ser capaz de erradicar o flagelo. Algumas medidas muito recentes podem ser o sinal de que alguma coisa vai mudar, se bem que tardiamente, mas a colocação temporária em “hostels” pode ser apenas uma forma de se mudar o problema de um lado para outro.

As organizações de solidariedade social e os voluntários que se dedicam generosamente ao apoio aos “sem abrigo” estabelecem programas de ação que acreditam ser úteis, e devemos estar-lhes gratos, porque o apoio social é fundamental e é fácil de compreender a enorme dificuldade que deve haver para encontrar um teto ou uma consulta de saúde mental. Mas, independentemente das estratégias de integração, é necessária uma atuação firme e sistemática de encaminhamento para infraestruturas que forneçam o apoio possível. Que haja respeito pela vida dos moradores e por aqueles que diariamente utilizam a Gare do Oriente no seu movimento diário entre a casa e o trabalho. Isso não deveria precisar sequer de ser reivindicado. Deveria corresponder ao funcionamento normal das instituições.