Na madrugada de sábado, na cidade do Porto, registaram-se três ataques contra imigrantes: “O primeiro incidente ocorreu por volta da 1:00, na zona do Campo 24 de Agosto, quando cinco homens armados com tacos de basebol, saíram de um carro e espancaram dois cidadãos de nacionalidade argelina. As vítimas tiveram de receber tratamento hospitalar. Minutos depois, o segundo ataque, como noticia o Jornal de Notícias. Na Rua do Bonfim, seis homens encapuzados e munidos com bastões, facas e pelo menos uma arma de fogo invadiram uma casa onde vive um grupo de imigrantes. Na habitação vive uma dezena de imigrantes argelinos e um venezuelano. Durante meia-hora, estes imigrantes foram espancados, alvo de insultos racistas e o recheio da casa foi destruído.” O terceiro ataque aconteceu na zona da Batalha, próximo de um restaurante de kebabs. Um cidadão marroquino foi agredido com grande violência.

O facto de estas agressões terem uma óbvia componente xenófoba contribuiu muito para que se quebrasse o manto de silêncio que habitualmente cai sobre os assuntos de (in)segurança, criminalidade e violência, sobretudo se envolverem imigrantes ou os portugueses que agora são rotulados como fazendo parte duma comunidade ou duma minoria. Desta vez, no Porto, o que é intolerável está ser encarado como intolerável e não como mais um “ajuste de contas”.

O “ajuste de contas” foi-se tornando o rótulo obrigatório das discretas notícias que dão conta da violência no mundo dos outros. Veja-se por exemplo o que aconteceu com as agressões que tiveram lugar recentemente em Alpiarça. Segundo o MiranteA rixa começou numa casa, entre os imigrantes que a habitam e um grupo de imigrantes asiáticos que se deslocou da zona de Lisboa. Ao que tudo indica os elementos da capital foram a Alpiarça para um ajuste de contas.”

Apesar de terem envolvido mais de 30 homens empunhando facas e bastões, a cobertura dos incidentes de Alpiarça ficou praticamente restrita às redes sociais e à imprensa local. Ninguém se interessou em saber o que levou os “elementos da capital” a Alpiarça e tudo se resumiu ao incontornável “ajuste de contas”, cujo absurdo, espero, os acontecimentos do Porto ilustrem: segundo o Jornal de Notícias, os ataques no Porto podem ser a reacção aos sucessivos assaltos e agressões  que se registam em determinadas zonas daquela cidade. Achar-se-ia normal por isso fechar os olhos ao acontecido na noite de sexta para sábado no Porto e rotular os ataques como “ajuste de contas”?

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Assim posto em contexto percebe-se melhor como à conta da folclorização do ajuste de contas temos andado a normalizar o que não é normalizável: “Morreu menino de sete anos atingido a tiro em Setúbal. O caso ocorreu perto das 12 horas no Bairro da Bela Vista, Setúbal. Em causa poderá estar um ajuste de contas contra a família das vítimas

Como temos transformado agressões e homicídios numa espécie de exercício de contas certas em negócios sem contabilidade organizada: “Um morto e três feridos em ajuste de contas no Seixal. Na origem do crime estará um ajuste de contas entre dois grupos por tráfico de droga.“; “Um homem foi assassinado no Porto num aparente ajuste de contas por negócios da droga. É o terceiro morto, em circunstâncias idênticas, desde outubro de 2023.“..

O mundo dos ajustes de contas é um mundo que achamos que não nos diz respeito porque os crimes acontecem entre “imigrantes asiáticos”, “clans familiares”, ou, no caso dos mais jovens, entre bairros das periferias: a 15 de Março a PSP foi chamada pela direcção Escola Secundária Seomara da Costa Primo, na Amadora, na sequência duma desordem “envolvendo armas brancas” e quiçá uma arma de fogo. Segundo a PSP, a “rixa” deveu-se a um conflito entre “grupos juvenis rivais”, um de Casal de Cambra e Caneças e o outro do Casal de Mira. E pronto fica tudo explicado: é o Casal de Cambra contra o Casal de Mira. Ou vice-versa! — conclui reconfortado quem pode colocar os filhos em escolas privadas ou, melhor ainda, beneficia duma morada que dá acesso a uma escola pública numa zona da cidade onde os únicos ajustes de contas de que se fala são os do Orçamento de Estado e das deduções do IRS.

Os dados divulgados no fim de Março pela Direção-Geral de Política de Justiça davam conta do crescimento da criminalidade: as 371.995 ocorrências registadas pelas polícias portuguesas em 2023 representam um aumento de 8% por comparação com 2022 e representam os valores mais elevados em 10 anos. Espera-se que o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) explique estes números, os detalhe e analise. Entretanto aguarda-se também que a grande questão da segurança nacional deixe de ser a carreira dos agentes de segurança e passe a ser a segurança ela mesma.

Até lá, casos como os sucedidos na madrugada de sábado do Porto vêm lembrar-nos que o crime existe e convém chamá-lo pelo seu nome. Porque quando tal não acontece acaba-se cúmplice (quanto mais não seja pelo medo) dos ajustes de contas.