Ontem, tivemos mais um dia normal na política portuguesa. De manhã, a imprensa anunciou que a nova secretária de Estado da Agricultura estaria envolvida, através do marido, em complicações judiciais. Depois do almoço, na Assembleia da República, o Primeiro-Ministro explicou que não tinha importância. Ao fim da tarde, o Presidente da República, num dos seus comentários da actualidade, insinuou que tinha alguma importância. Ao princípio da noite, a secretária de Estado demitia-se. Já não parece poder haver uma semana sem a demissão de um membro do governo. A isto chama-se, curiosamente, “estabilidade política”.
Como é possível? Não era António Costa o homem mais hábil que alguma vez passou pelo governo em Portugal? Não tem ele, desde o ano passado, uma maioria absoluta na Assembleia da República, o que, pelo menos nos primeiros tempos, costuma garantir tranquilos sonos governamentais? Que se está a passar?
De facto, estamos perante a solução de um paradoxo. Era este: é possível um poder forte numa sociedade cada vez mais fraca? A sociedade portuguesa entrou há vinte e tal anos numa trajectória de retracção demográfica e divergência económica. Não por causa de conjunturas más, mas porque o estatismo socialista impediu o país – com acesso a um grande mercado internacional, crédito barato e subsídios externos, e com uma população cada vez mais qualificada — de aproveitar a mais favorável época da sua história para fazer a economia crescer e a sociedade prosperar. O Partido Socialista, porém, pareceu até agora invulnerável a esta degradação. O ano passado, teve mesmo o prémio de uma maioria absoluta. A explicação não parecia difícil. O PS capturou o Estado, a partir do qual controla instituições, comunicação social e grandes empresas. Parecia, por isso, destinado a tornar-se cada vez mais forte, perante uma sociedade cada vez mais fraca, e portanto cada vez menos capaz de resistir e de gerar alternativas.
Estamos a ver agora que a história é mais complicada. Como talvez fosse previsível, a fraqueza da sociedade portuguesa está também a chegar ao poder socialista. É notório, por exemplo, que esse poder, no topo, assenta num círculo muito restrito de pessoas, todas ligadas entre si, e há muito tempo ligadas à governação. Nem mesmo a maioria absoluta deixou António Costa à vontade para ir recrutar ministros ou secretários de Estado fora desse clube. Quanto mais poder tem, mais o PS encolhe, o que faz sentido: numa sociedade a empobrecer, aqueles que mandam tendem naturalmente a reservar os privilégios para si próprios. Mas porque é assim, é quase impossível o Primeiro-Ministro escolher alguém nesse círculo mágico sem, ao mesmo tempo, chamar involuntariamente a atenção para o modo como o escolhido aproveitou a sua filiação ou cumplicidades partidárias a fim de fazer carreira e negócios. Como poderia ser de outra maneira, num país em que só há oportunidades para quem tem acesso ao poder? E ao contrário do que diz António Costa, não chega, para impedir murmúrios e reflexões, clamar que não há matéria criminal, ou que essa matéria não está julgada. A injustiça não é simplesmente uma questão judicial.
A desmoralização é dupla. Por um lado, desgosta quem, de fora do poder socialista, se vê obrigado a tomar doses reforçadas de cinismo para suportar o carnaval do Estado; por outro lado, e esse é talvez o efeito mais perigoso para esse poder, divide quem está dentro, ao multiplicar os que, deixados cair, vão alimentar o rancor das facções. O governo socialista está em declínio, como o país. Resta saber quem chegará ao fundo primeiro.