A propósito do art. 22.º, n.º 4, do Decreto n.º 9/2020, da Presidência do Conselho de Ministros, que manda suspender as atividades letivas nos dias 30 de novembro e 7 de dezembro, soube-se que a Associação dos Estabelecimentos de Ensino Particular e Cooperativo (AEEPC) interpreta o mesmo no sentido de que a suspensão das atividades letivas aí prevista não impede aulas (ou outras atividades letivas) à distância. Na sequência desta notícia, “fonte do Executivo” (segundo o jornal Público) teria afirmado que a suspensão em causa também incluiria aulas não presenciais.

Não se sabe quem é esta “fonte do Executivo”, mas seguramente esta “interpretação” do acima aludido art. 22.º, n.º 4 (assim mesmo, com aspas) não faz qualquer sentido e, pelo contrário, a ser verdadeira, representaria mesmo um perigoso exercício de autoritarismo e arbitrariedade do Estado português.

Tal como já escrevi noutro local, importa ter presente que interpretar textos legais obedece a regras específicas.

Um texto legal não revela estados de alma ou sentimentos (como pode ser um texto literário), não descreve factos ou opiniões (como um texto jornalístico), não visa persuadir o leitor (como pode acontecer com um texto científico ou um manifesto político). O texto legal tem uma intenção normativa, manifesta uma norma jurídica, estabelece um critério de decisão de uma situação típica de conflito de interesses. É uma espécie de instrução dada pelo legislador ao juiz sobre como resolver certo tipo de conflitos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por outro lado, superado o positivismo jurídico do séc. XIX, é hoje genericamente aceite que este critério de decisão traduz uma certa ideia de justiça, o resultado de uma ponderação feita pelo legislador, tantas vezes complexa, que pode envolver várias conceções de justiça, princípios jurídicos (igualdade, liberdade, segurança, confiança, proteção social, por exemplo), questões de exequibilidade prática da norma, interesses legítimos de certos grupos sociais, etc..

Isto significa que a correta aplicação de uma norma jurídica passa, necessariamente, por uma correta compreensão da mesma. Em rigor, o juiz interpreta a norma (e não o texto) manifestada no texto legal para compreender a ideia de justiça que a mesma revela e, portanto, o critério de decisão que deve aplicar na categoria de casos descrita na norma.

Se o que se exige ao intérprete é compreender a norma manifestada no texto, facilmente se conclui que a interpretação de normas nunca se pode ficar por esse texto, ou, mais corretamente, pelo sentido mais próximo do significado natural das palavras usadas no texto legal. Do mesmo modo, e superado também o subjetivismo que floresceu juntamente com o positivismo jurídico acima mencionado, a opinião expressa pelo órgão político é relevante, mas não decisiva na fixação do sentido da norma a interpretar. Existe a chamada “interpretação autêntica”, de facto, mas para isso é necessário que o órgão que criou a norma a interpretar fixe o seu sentido definitivo através de um novo diploma legal (a chamada “lei interpretativa”), mas não é esse o nosso caso.

Por muito claro que o texto da lei possa parecer à primeira vista, a correta compreensão da norma obriga a, pelo menos, identificar as finalidades por ela prosseguidas, identificar os valores ou interesses que a norma visa proteger com aquele critério de decisão (a razão de ser da norma, ratio iuris ou elemento teleológico de interpretação). Se o sentido mais imediatamente sugerido pelo texto legal se revelar absurdo, ilógico ou manifestamente injusto (tendo em conta as premissas da interpretação), esse sentido deve ser imediatamente afastado, ainda que, insisto, seja o sentido mais próximo do significado natural das palavras usadas no texto legal.

Por outro lado, é também fundamental considerar o modo como a norma se articula com as demais normas do instituto em que aquela se insere, e, no limite, até a articulação da norma com outros institutos (elemento sistemático de interpretação). Por exemplo, importa verificar se o sentido extraído do texto não é contraditório com o sentido de outras normas, seja ao nível do próprio texto, seja ao nível das finalidades prosseguidas pelas normas, seja ao nível dos valores ou princípios protegidos ou concretizados na norma, respetivamente.

Pelo menos estes dois aspetos (porque há outros) têm de ser considerados na interpretação de qualquer norma em qualquer circunstância. Se o intérprete verificar que o sentido primeiramente extraído do texto legal não é posto em causa pela consideração dos demais elementos de interpretação, então, aí sim, poderá concluir que aquele é o sentido correto, caso contrário, terá de considerar outros sentidos possíveis. Ou seja, mesmo a conclusão de que o sentido correto da norma é, afinal, aquele mais imediatamente sugerido pelo texto legal, tal conclusão é já o resultado de um processo de compreensão que envolveu outros elementos de interpretação, que não apenas o texto.

Ora, o art. 22.º, n.º 4, do Decreto n.º 9/2020, determina que nos dias 30 de novembro e 7 de dezembro “ficam igualmente suspensas as atividades letivas e não letivas e formativas” em todos os estabelecimentos de ensino. Como se vê, o texto da lei não distingue entre atividades presenciais e não presenciais, mas existem três argumentos decisivos a favor da interpretação feita pela AEEPC.

O primeiro resulta do próprio preâmbulo do diploma, no qual se explica que se pretende suspender “as atividades letivas e não letivas e formativas com presença de estudantes em estabelecimentos de ensino”. Com alguma frequência, o preâmbulo contextualiza o diploma, resume as suas principais soluções e, por vezes, até explica as opções do legislador. Como se vê, neste caso, o preâmbulo aponta para uma intenção legislativa que vai no sentido de suspender as atividades letivas que envolvam presença dos alunos e docentes nos respetivos estabelecimentos de ensino.

O segundo argumento resulta da consideração da acima aludida “razão de ser da norma”.

Sabemos que este Decreto surge no contexto do atual estado de emergência com o objetivo de conter a propagação do vírus SARS-CoV-2. Isso resulta do Decreto da Presidência da República, é expressamente mencionado logo na primeira frase do preâmbulo do diploma e é um facto público e notório. Do que se sabe até ao momento, o vírus transmite-se através do contacto social. Ora, se o vírus se transmite entre pessoas que estão socialmente próximas e se o Decreto ministerial visa conter a propagação desse vírus, então a razão de ser do diploma é restringir (impedir) o contacto social. Nas atividades letivas à distância não há contacto social, logo um legislador razoável e ponderado não pode ter pretendido suspender as atividades letivas à distância.

Em terceiro lugar, e ainda tendo presente que o vírus se transmite por contacto social, um legislador que, consciente desse facto, pretendesse impedir as atividades letivas não presenciais, estaria a limitar a liberdade dos cidadãos de forma completamente injustificada, e, por isso, a introduzir uma restrição intolerável e arbitrária à liberdade dos portugueses, especialmente às liberdades de aprender e de ensinar (ambas consagradas na Constituição, no art. 43.º), própria de uma ditadura, e não de um Estado que se reclama um Estado de Direito Democrático, garante dos direitos e liberdades fundamentais (art. 2.º da Constituição).

Num verdadeiro Estado Democrático de Direito, as leis servem para organizar a sociedade (desde logo regulando a liberdade individual) de acordo com uma ideia de Justiça; a prossecução de uma ideia de Justiça é tão inerente a qualquer sistema jurídico que os autores usam os dois termos (ideia de Justiça e ideia de Direito) de forma indistinta: apenas o que é Justo é de Direito. Na fórmula lapidar de Gustav Radbruch (recentemente retomada por Robert Alexy), Direito manifestamente injusto não é Direito.

Assim, ainda que se demonstrasse que a intenção expressa do legislador seria suspender também as atividades letivas não presenciais, a medida seria tão injusta, arbitrária e tão intoleravelmente violadora da liberdade, que seria manifestamente inconstitucional e legitimaria os órgãos judiciais competentes a não aplicar a norma com esse sentido.

Assim, a menos que o Gabinete do Primeiro-Ministro tenha informações fiáveis de que o SARS-CoV-2 se transmite também através de computadores, o Decreto ministerial não pode suspender as atividades letivas não presenciais nos dias 30 de novembro e 7 de dezembro.