Logo nas primeiras aulas do curso de Direito, os meus alunos aprendem que a vivência em sociedade é inerente à condição humana e que essa vivência arrasta o risco de conflitos. Em ligação com este facto, aprendem que a função primordial do Direito é a criação de condições (i) para resolver os conflitos entre pessoas de forma pacífica, (ii) para evitar, na medida do possível, esses conflitos e (iii) para que as pessoas possam cooperar entre si.

O Direito traduz-se em regras de comportamento que organizam a sociedade; aprendemos essas regras de forma quase intuitiva quando somos crianças e de forma mais consciente enquanto nos tornamos adultos.

A organização da sociedade é assegurada, em primeira linha, pela ordenação da liberdade individual. Através desta ordenação, cada um de nós sabe os direitos que tem, os deveres que tem perante os outros e perante a sociedade em geral, e a liberdade que lhe é reconhecida nessa sociedade. Esta ordenação implica, por isso, limitações à nossa liberdade.

Estas limitações não podem ser arbitrárias, mas devem corresponder a uma ideia de justiça. As leis são, assim e antes de mais nada, restrições à liberdade individual com vista a uma organização da sociedade segundo critérios de justiça. A justiça é inerente a qualquer ideia de Direito; Direito é justiça em ação.

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A alternativa a uma ordem justa é uma ordem fundada na opressão, na violência e na arbitrariedade. As vítimas duma tal ordem são os mais frágeis e todos aqueles que os mais fortes escolhem não proteger.

A escolha por uma ordem justa é, assim, uma escolha política fundamental e, inclusivamente, consta logo dos arts. 1.º a 3.º, inclusive, da nossa Constituição (adiante CRP). Nestas normas identificamos os pilares de uma ordem justa: a defesa da dignidade de cada pessoa e consequente igualdade perante a lei, defesa da liberdade individual e solidariedade. Por outro lado, a criação de cada lei traduz, também ela, uma decisão política, numa dupla vertente: na eleição do objetivo, valor ou interesse legítimo que justifica uma restrição à liberdade, e na determinação da restrição em causa, que deverá ser sempre adequada e proporcional, sob pena de não ser justa.

As primeiras restrições à liberdade justificam-se pela necessidade de preservar a máxima liberdade possível, e efetiva, de todos os membros da sociedade, em todas as dimensões da sua vida: liberdade moral, liberdade pessoal, liberdade social, liberdade económica, liberdade política (de onde emergem os direitos fundamentais). Outras restrições justificam-se pela proteção de outros princípios jurídicos ou valores fundamentais de cada sociedade em particular. Em sociedade não há liberdade ilimitada nem direitos ilimitados.

Este poder de criar leis pertence originariamente ao povo (art. 108.º CRP) e é exercido pelo parlamento em representação do povo (art. 147.º CRP). Assim, no exercício da sua função político-legislativa, o legislador não pode tudo; ele está limitado pelo objetivo superior de realizar uma ordem justa e todos os atos e decisões que se desviem desse objetivo são ilegítimos e, por isso, juridicamente inválidos. Por este motivo, recai sobre o legislador o ónus indeclinável de justificar, em cada caso, a necessidade de restringir a liberdade dos cidadãos e a adequação da medida dessa restrição.

Só pelos motivos acima apontados, estaria plenamente justificada a necessidade de integrar no ensino do Direito uma componente relevante de literacia política, não só porque alguns dos estudantes serão seguramente chamados à nobre tarefa de legislar, mas ainda porque a boa aplicação do Direito implica a compreensão da escolha política subjacente à norma que se pretende interpretar e/ou aplicar.

Numa situação ideal, a criação de cada lei é precedida de uma avaliação cuidadosa da sua relevância política e da sua coerência com o objetivo geral da manutenção de uma ordem social justa. A ponderação destes aspetos é determinada, naturalmente, pelas conceções políticas, filosóficas e sociais do legislador, podendo ainda intervir considerações de política legislativa e/ou ligadas ao contexto histórico. Deve também ser feita uma avaliação cuidadosa da coerência do projeto legislativo com o sistema jurídico no seu conjunto, para evitar contradições e “corpos estranhos” nesse sistema. Outros aspetos a considerar são a exequibilidade prática da solução gizada e a sua proporcionalidade, em função do objetivo prosseguido pelo legislador (particularmente quando estiver em causa uma intenção transformadora da sociedade), bem como a necessidade de não causar perturbação nos equilíbrios sociais básicos.

Numa situação ideal, sempre que no parlamento se confrontam posições sobre a aprovação ou não aprovação de certa medida legislativa, cada grupo parlamentar (cada partido político) defenderá a sua ideia de justiça, pela convicção de que é essa a que melhor serve o povo em geral (e não grupos específicos). Num sistema democrático, prevalece a ideia de justiça da maioria parlamentar, não por ser a vontade da maioria, mas por ser a vontade justa da maioria.

Porém, não podemos ignorar que, por vezes, as leis são apenas o produto da pressão exercida sobre o Estado por grupos políticos, sociais, profissionais, económicos e outros, que prosseguem objetivos próprios, muitas vezes não declarados (para dizer o mínimo), que só por coincidência se harmonizam com a tal ordem justa acima aludida. Acontece até que algumas dessas pressões provêm do interior dos órgãos do Estado e da administração pública, de forças com interesses corporativos ou económicos que pretendem instrumentalizar o poder político em seu benefício.

Estes grupos de pressão não hesitam em usar o espaço público para fazer valer as suas posições, devidamente amplificados por uma comunicação social frequentemente demasiado passiva e acrítica. O discurso público, que deveria ser objetivo, transparente e, no máximo, com intenção persuasiva, é frequentemente agressivo e manipulador, às vezes histérico, com recurso ao engano, à meia verdade descontextualizada e, até, à mentira pura e simples. O discurso de alguns dirigentes políticos, sindicais, corporativos e até desportivos homogeneizou-se em torno destas caraterísticas, ao ponto de, hoje em dia, o fact checking se ter tornado uma necessidade absoluta.

A um jurista de corpo inteiro exige-se capacidade de ler a realidade tal como ela é, e não como estes grupos a apregoam, exige-se lucidez e serenidade perante esta cacofonia, capacidade de distinguir entre verdade e mentira, entre factos e interpretações de factos, entre factos e previsões, entre factos e simples opiniões, entre opiniões fundadas e opiniões infundadas, entre objetivos declarados e objetivos inconfessados (e inconfessáveis). Por essa razão, a capacidade de ler o contexto potencia o conhecimento técnico-científico de um jurista, independentemente da profissão jurídica que escolha. Por outras palavras, o conhecimento do mundo à nossa volta não só faz de nós melhores cidadãos, como majora a sua empregabilidade e carreira. Esta capacidade de leitura do contexto, da comunidade/polis, tem um nome: literacia política, no seu sentido lato.

Um autor designou os juristas como os especialistas da clareza. Esta capacidade de ler e explicar a realidade, com clareza, tem de se revelar desde logo, na capacidade de descodificar o discurso público, na capacidade de compreender e explicar as opções políticas e os eventuais interesses políticos, económicos e corporativos que as motivaram. Desta forma, os juristas garantem o respeito pela justiça e pela liberdade (de onde nascem os direitos fundamentais), tendo o dever de denunciar todas e quaisquer tentativas de desvios face ao compromisso fundamental de manter uma ordem justa.

Pelas razões apontadas, estas capacidades têm de ser consideradas um aspeto fundamental do ensino do Direito. Elas são, aliás, fundamentais na administração da justiça em geral.

Cabendo ao Estado a tarefa da administração da Justiça, esta tem de ser levada a cabo sem hesitações ou tibiezas. Se o Estado for fraco, incapaz de realizar e fazer respeitar uma ordem justa, rapidamente seremos conduzidos à arbitrariedade, aos abusos de poder e à destruição da liberdade. Todos os juristas devem ter consciência desta realidade e todos têm o dever deontológico de colaborar na tarefa, sempre inacabada, de construir uma ordem justa assente nos quatro pilares acima mencionados: respeito pela dignidade de cada pessoa, igualdade perante a lei e os poderes públicos, defesa intransigente da liberdade individual e solidariedade.