No passado, o grande desafio foi o de conquistar direitos e liberdades civis, como a liberdade de pensar e manifestar livremente opiniões políticas ou outras, ou o direito à segurança pessoal e dos bens, ou o direito a um julgamento justo, ou à presunção de inocência, ou de escolher livremente os seus representantes políticos, etc. – tudo direitos e liberdades que pressupõem que cada indivíduo é dotado incondicionalmente de certos direitos, liberdades e garantias inalienáveis, das quais só em parte, e em circunstâncias muito excecionais, e devidamente previstas pela lei, pode ser subtraído. É aquilo que se designa por vezes de “liberdade negativa”: pelo seu estatuto natural de pertença a um Estado de Direito, o indivíduo está investido à partida de uma “personalidade jurídica” que, nem o estado, nem os outros indivíduos podem violar, e que devem por conseguinte respeitar no quadro da constituição e da lei que a todos protege e vincula por igual. Tudo isto nós fomos conquistando devagar e paulatinamente ao longo da nossa história, mas nunca de uma vez só, e inclusive com avanços e retrocessos, evoluções e involuções. O 25 de abril foi um episódio importante na história dessas conquistas, embora devamos remontar o liberalismo constitucional português à constituição de 1822, resultado da revolução de 24 de agosto de 1820.

Hoje, para aqueles que têm o privilégio de viver em estados de direito democrático mais ou menos funcionais, emerge outro grande desafio, que é o de fazer uso pleno e correto dessa liberdade. Para aqueles que têm relativamente asseguradas as liberdades de pensamento e de ação, de escolha e movimento, e que além disso gozam de um relativo desafogo material, bem assim de acesso à educação e à cultura, o desafio começa a ser também o de aprender a fazer uso correto e pleno da “liberdade positiva”, isto é, de todas as potências e oportunidades de realização humana, profissional, moral e espiritual – liberdade, portanto, de ser – de que a “liberdade negativa” é condição básica. Precisamente porque a nossa condição de cidadãos de estados de direito democrático, com as suas garantias constitucionais e legais, com a sua relativa prosperidade material, com a sua relativa paz e segurança, nos permitem ser e fazer coisas que de outro modo não poderíamos fazer, por estarmos condenados a uma certa menoridade cívica, intelectual e espiritual.

Em grande medida, os desafios que se colocam hoje à nossa liberdade são desafios que se colocam de forma muito pessoal, resumíveis numa só questão: o que farei com a minha vida?, ou numa formulação equivalente, como devo viver? Qual a forma mais correta e significativa de gerir o meu tempo e os meus ócios? Devo limitar-me a ser um bom consumidor, reprodutor fiel das leis socieconómicas, ou devo instruir-me, ler mais, (re)descobrir e cultivar um talento, participar na vida coletiva, expressar algo de belo e de verdadeiro, ajudar os outros; enfim, pensar, exercitar-me para, no dizer do Pe. Manuel Antunes sj, sair da passividade natural e assim saltar a fronteira do mundo da natureza para o mundo do espírito? O que devo fazer para viver melhor, isto é, com mais sentido, autenticidade, plenitude e felicidade? O que devo enfim fazer para me humanizar? Qual a minha vocação? Como devo cultivá-la? Que legado sou chamado a criar? Em resumo: o que devo fazer com a minha liberdade? Como devo cultivá-la o melhor possível?

Sabemos bem que a “liberdade positiva” – isto é, repito, a liberdade de ser e de se autoconsumar – é hoje muitas vezes consumida pelo sem-sentido, por ócios mal aproveitados, por dissipação e dispersão em futilidades que, ao fim do dia, se traduzem em nadas – nada de útil, nada de bom, nada de substantivo para o próprio e para os demais. É que se nos dissiparmos em atividades circulares, viciosas, que não passam de um eterno retorno da superficialidade – penso, por exemplo, no tempo excessivo passado ao telemóvel, imersos numa torrente de estímulos que se sucedem ininterruptamente numa vertigem hipnótica que suspende todo o pensamento e ação –, teremos precisamente o nada por herança. Temos de querer despertar, por vezes violentamente, “arrancando-nos a nós mesmos”, como dizia Jaspers, desse hipnotismo e dessa passividade. Dizia Alain que “É preciso querer ser feliz e contribuir para isso. Se ficarmos na posição do espectador impassível, deixando para a felicidade apenas a entrada livre e as portas abertas, será a tristeza que entrará.

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O desafio fundamental da Liberdade diz-se assim: antes eu era mandado, não tinha de pensar nem decidir, pois outros decidiam por mim. Eu não fazia nem escolhia nem assumia porque não podia ou não sabia; a opressão era terrível, mas era também o meu pretexto, a minha confortável desculpa para não sair da menoridade. Hoje, devo assumir a paternidade de mim próprio, tornar-me o protagonista da minha própria vida. Estou investido da minha condenação pessoal, a de ter de fazer escolhas, a de ter de me fazer Homem ou Mulher sem alijar nos outros essa responsabilidade, sem culpar outrem pelos meus fracassos. Como? Nem só de paz social, segurança ou prosperidade vive o Homem! Ele tem de encher o espaço e o tempo com a sua própria substância, realizar-se historicamente, ainda que para além da História, a partir da sua própria, única e irrepetível singularidade, indo buscar dentro de si a verdade e a beleza que lhe é própria para a partilhar com o mundo como quiser. Pois o esforço honesto de expressão e comunicação autêntica pela palavra e pelo gesto é provavelmente a própria essência da liberdade e do sentido da vida humana. Como diz Heidegger, o Homem é ser-em-projeto, ou seja, verdade que combate pela autoexpressão autêntica. Agostinho da Silva, por outro lado, diz que o Homem é um “ponto com alma“, ao qual é sempre necessário retornar, quer para encontrar a verdadeira liberdade, quer para explicar a própria História, tantas vezes reduzida a determinismos económicos, psicológicos, sociológicos ou outros.

O grande desafio da Liberdade, depois da conquista da liberdade civil e política, supõe transcender o civil, o social e o económico, para a conquista da essência do humano. Supõe um novo desígnio civilizacional assente no assumir coletivo de uma nova finalidade, que na sua natureza não pode ser senão espiritual, baseada num reconhecimento das mais profundas aspirações humanas de autoconhecimento, verdade, justiça e autorrealização. Algo que pode ser formulado assim: A realização plena da pessoa humana em cada indivíduo, na sua singularidade, por via de uma aprendizagem contínua e de um esforço de aperfeiçoamento incessante, num processo de expansão de consciência que o torne mais lúcido e capaz de aprofundar o conhecimento acerca de si próprio e da realidade existencial do homem enquanto tal, e do universo como um todo, onde esta existência tem lugar (in Azevedo, Ruben David, Enigma – noemas em torno do Ser e do Existir, Lisboa, Chiado Editora, 2016).

A primazia atribuída coletivamente às finalidades económicas e financeiras (PIB, PNB, etc.) deve ser substituída pela primazia das finalidades espirituais. Isto não significa esquecer as primeiras, mas sim promover uma reorientação das prioridades e desígnios do humano conforme com os mais profundos anseios e aspirações da natureza humana. Nas empresas, nas escolas e universidades, na vida coletiva, este espírito humanizador deve estar cada vez mais presente em princípios, regras, atividades, que não apenas evitem a despersonalização e instrumentalização das pessoas, mas também promovam o seu contacto com os mais amplos horizontes de cultura, autoconhecimento, verdade espiritual, moral, científica, etc.