A questão do controlo do Governo tem sido uma preocupação central da ciência política ao longo dos últimos séculos. A ideia liberal de “checks and balances” – fundamental no constitucionalismo dos EUA e presente em muitas outras tradições constitucionais sob a forma de separação de poderes – visa em primeiro lugar (ainda que não exclusivamente) limitar abusos por parte do poder executivo. De facto, tanto pela sua posição como pelo seu modo de funcionamento, tenderá a ser na maioria das circunstâncias o poder executivo aquele que maiores riscos acarreta para os direitos e liberdades dos cidadãos.

Daí que faça sentido dedicar especial atenção à problemática do controlo do Governo e, em particular no caso português, do insuficiente e inadequado controlo democrático do Governo, nomeadamente por via da Assembleia da República. A este respeito, vale a pena recuperar algumas reflexões desenvolvidas no capítulo “Controlo democrático do orçamento”, de que fui co-autor juntamente com Catarina Leão e que foi elaborado no âmbito do estudo Orçamento, economia e democracia, resultado de um projecto promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, coordenado por Abel Mateus e no qual participaram também Francesco Franco, José Tavares e Rita Calçada Pires.

No referido capítulo, recuperamos a classificação de Polsby para medir a influência das instituições legislativas na elaboração das políticas e nomeadamente o seu modelo de medição do grau de independência do poder legislativo face a influências externas. Um modelo que estabelece o contraste conceptual entre, por um lado, as legislaturas ditas de “arena” e, por outro, as legislaturas ditas “transformativas”. As legislaturas de tipologia arena são caracterizadas por uma elevada sujeição a outras instituições na tomada de decisão, com destaque naturalmente para o poder executivo. São consequentemente legislaturas mais focadas no debate e na exposição mediática. Em contraste, as legislaturas transformativas possuem uma ampla margem de independência, o que as leva a ter efectivos poderes de controlo sobre o Governo.

Enquanto as legislaturas de “arena” são controladas pela acção de organismos externos, como os partidos políticos, as legislaturas “transformativas” são no essencial reguladas internamente através de comités ou outras forma de organização autónoma. Assim, pode dizer-se que a principal diferença entre os dois tipos de legislatura é a sua independência (no caso das legislaturas “transformativas”) e dependência (no caso das legislaturas de “arena”) face a influências externas, com destaque para a influência do poder executivo.

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Para efectuar a medição do posicionamento de legislaturas concretas no eixo entre os dois extremos conceptuais referidos, Polsby propõe a avaliação de três dimensões: a homogeneidade do partido ou coligação no poder, sendo que quanto mais homogénea e pequena for essa coligação, menos uma legislatura poderá ser considerada transformativa; o grau de hierarquização na estrutura interna dos partidos, sendo que quanto maior for, menos transformativa será a legislatura, particularmente no caso do partido ou coligação que controla o poder executivo; e a consistência, sendo que quanto mais consistentes forem as coligações ou maiorias que aprovam projetos de lei, menos transformativa será a legislatura.

Aplicando a análise ao caso do Parlamento português, no já referido estudo (Controlo democrático do orçamento, pp. 279-280) concluímos que:

Tendo em conta a análise aos três critérios de Polsby – homogeneidade, hierarquia e consistência – destinados a localizar uma legislatura no espectro transformativa versus arena, é possível concluir que o Parlamento português é uma instituição claramente de arena. Isto deve‑se em grande parte à soberania do poder executivo sobre o legislativo, mas também à falta de autonomia e diversidade de atuação dentro dos maiores GPs, que impossibilita a mudança do status quo, e à sua tendência hierárquica. Contudo, a caracterização da legislatura portuguesa como arena assenta predominantemente na sua falta de autonomia relativamente a influências externas, nomeadamente à influência do Governo. Esta caracterização mostra a fragilidade do Parlamento português em tomar decisões de políticas públicas, o que de algum modo revela também um certo desequilíbrio da balança de poderes (legislativo, executivo e judicial), com um legislativo mais frágil.

Uma realidade que é agravada também pela falta de informação e transparência no processo de algumas das mais relevantes decisões políticas. Conforme recentemente explicado por Susana Peralta em artigo no Público (Sabia que o Parlamento não conhece o OE que hoje vota?) tendo por referência o processo de aprovação do Orçamento do Estado, é simplesmente impossível que os deputados pudessem absorver e processar tanta informação em tão curto espaço de tempo, o que faz com que seja igualmente impossível admitir que pudessem votar de forma informada e responsável, mesmo que fosse essa a sua firme intenção.

A consequência de tudo isto é um inadequado e insuficiente controlo democrático do Governo com o debate parlamentar a ficar frequentemente reduzido a uma arena de exibição e contabilização de propostas para efeitos puramente mediáticos. A Assembleia da República funciona assim no essencial como um local onde a discussão produzida se destina essencialmente ao consumo mediático (o que ajuda a compreender também o predomínio de actos de natureza simbólica). Ao funcionar essencialmente como uma arena de confrontação mediática, dificilmente o Parlamento português na sua configuração actual pode controlar efectivamente o Governo, uma realidade que é agravada pela tendência contemporânea para que os executivos ganhem cada vez maior preponderância sobre o poder legislativo ao qual (supostamente) respondem.

Estes são alguns dos temas que serão também discutidos hoje, dia 7 de Dezembro, nos Encontros Anuais de Ciência Política organizados pela FDUP, no Porto, onde, a partir das 16h30, participarei no painel “O controlo do Governo” juntamente com Suzana Tavares da Silva e Alexandra Leitão.