A nomeação promovida pelo primeiro-ministro do diplomata José Júlio Pereira Gomes para secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa é, para mim, um duplo choque.
O primeiro choque é provocado pelo facto de a nomeação ser mais um indicador nítido de que os partidos políticos portugueses não conseguem ter uma relação madura e profissional com os serviços de informações.
O segundo choque é provocado pelo facto de que o diplomata escolhido tenha acedido ao convite, recusando-se a aceitar, devido a complexos traços de personalidade, que o seu desempenho profissional como Secretário de Estado da Defesa, entre 1995 e 1997, e como chefe da Missão Diplomática Portuguesa no Referendo de Timor-Leste, em 1999, o impedem de ter capacidade para desempenhar a função em causa.
Para quem, como eu, estuda há mais de 25 anos o sistema de informações português, há um problema estrutural que nunca foi resolvido.
Os receptores primários e fundamentais do trabalho do sistema, o Presidente da República e o Governo, desconfiam, desvalorizam e menorizam a actividade e o produto dos agentes do sistema, ou seja dos serviços de informações, SIS e SIED.
Esta cultura manifesta-se tanto nas relações profissionais comuns entre os órgãos de soberania e os referidos serviços, como em momentos cruciais, como é este da escolha e nomeação de um secretário-geral do sistema.
Para dar conta aqui apenas das funções essenciais do cargo, o secretário-geral tem o poder para conhecer toda a informação investigada e produzida pelo sistema, o de determinar prioridades de investigações, bem como o de decidir o que deve ser comunicado ao Presidente da República e ao Governo, através do primeiro-ministro.
A função, então, tem de ser desempenhada por um secretário-geral politicamente ecuménico, e com uma personalidade talhada para resistir a pressões violentas e a riscos que, muitas vezes, estão relacionados com perigos maiores para os cidadãos portugueses.
Ao nomear o diplomata José Júlio Pereira Gomes, o primeiro-ministro desprezou esta exigência, juntando-se ao grupo de governantes que tem contribuído, nas últimas décadas, para uma contínua desvalorização institucional do papel dos serviços de informações na democracia portuguesa.
Neste episódio específico, a desvalorização é extremamente nítida porque o diplomata José Júlio Pereira Gomes não possui uma personalidade com a tipologia que apontei.
Da minha relação profissional, como jornalista, com o diplomata referido, tanto nas suas funções governamentais, como na sua liderança em Timor-Leste, há um vasto conjunto de traços de personalidade e de comportamentos que devo apontar.
Em primeiro lugar, o diplomata em causa não teve o profissionalismo necessário para lidar com o facto de que as funções que desempenhava estavam sujeitas a escrutínio público.
Esta incapacidade levou-o a considerar um vasto conjunto de investigações feitas por mim como ataques pessoais, e, num processo mental que ainda hoje me surpreende, a cometer um sistemático abuso de poder, informando pessoalmente os seus subordinados, no ministério da Defesa, e na missão em Timor-Leste, de que estavam proibidos de qualquer contacto pessoal e profissional comigo.
De seguida, o que aconteceu, no Ministério da Defesa, mas especialmente em Timor-Leste, foi que o diplomata cedeu mentalmente à pressão dos cargos que exerceu, e no caso de Timor ao contexto de segurança existente naqueles meses de 1999, e o pânico paranoico em que se encerrou determinou as suas decisões e actos.
Estas decisões e actos foram, muitas vezes, contrários aos objectivos da Missão que chefiava, afectaram os interesses portugueses, prejudicaram o desejo do povo timorense, e colocaram em risco vidas.
Mas, o mais importante é que o diplomata José Júlio Pereira Gomes nunca foi capaz de dar conta pública do seu comportamento nas funções profissionais que aqui isolo, entrando num processo de negação que dura até hoje.
Assim, a sua nomeação pelo primeiro-ministro é um acto de amadorismo que só pode ser explicado pela cultura governamental que refiro neste texto, mas a aceitação por parte do diplomata mostra claramente o que domina a sua personalidade.
Cabe agora à Assembleia da República, através da comissão indicada, promover o inquérito indispensável à adequação do nomeado ao cargo, e não sancionar a escolha governamental de modo burocrático e leviano.