Era uma vez um homem que tinha por si próprio a maior das considerações. De manhã, ao levantar, enchia o peito de ar, olhava-se ao espelho e dizia: “Tens muita sorte, espelho, de poderes refletir a minha imagem!”. Depois de, longamente, se apreciar, erguia a voz no quarto povoado pelo seu ego, declarando, solene: “Sou magnífico! Magnífico!”. E o eco, entre as nove paredes, o teto abobadado e o chão brilhante, repetia, tonitruante: “Magnífico! Magnífico!”. Satisfeito pelo coro laudatório, o homem, cumprido o ritual das abluções matinais, sentava-se sobre o estrado, no tapete de seda debruada a ouro fino. Ocupava uma posição central, no pavimento feito com os mais preciosos mármores, embutidos pelos melhores artesãos. Cornucópias, flores, frutos, numa talha profusa de cores naturais e refinado corte, compunham a geografia da superfície, cenário de requintada abundância, sob os seus pés. Altaneiro, olhava à volta, declarando: “Mesmo sentado, sou magnífico!”. Depois, fazia silêncio, cerrava, devagar, as pálpebras, ao pronunciar, no interior de si, um mantra: “Sou magnífico! Sou magnífico! Sou magnífico!”. E concluía, cada manhã, todas as manhãs, que a magnificência o cobria dos pés à cabeça.
Levantava-se. Pousado sobre um cabide de quarto, estava o hábito de segunda-feira. O hábito, era igual ao dos restantes dias, que ele não contava como dias da semana, mês, ou ano. Cada dia, era uma gota no rio grande, um fluxo contínuo e glorioso. Não havia razão para destacar momentos, dias, semanas, meses, anos, pois todas as parcelas de tempo e espaço eram só cintilantes partes do seu brilho contínuo.
Pegou no hábito, feito num tecido leve e, inteiramente, coberto de espelhos. Espelhos, cada um, do tamanho de um milésimo de uma cabeça de alfinete, todos incrustados de forma absolutamente rigorosa sobre o algodão, de tal forma que era impossível distinguir espaços entre os mesmos, o hábito era um espelho único, refletindo a realidade em volta.
Conforme se virava, se olhava, se aproximava ou afastava das pessoas e das coisas, o seu hábito mostrava os próprios movimentos e os do mundo, uma espécie de permanente testemunha do entorno.
Quando se colocava em frente do seu espelho de corpo inteiro, mil e um homens magníficos eram refletidos, sucessivamente, em si e no espelho diante de si. Tornava-se o espelho de si próprio e o próprio do seu espelho, numa reiteração perpétua de mimetismo que correspondia ao espetáculo de si para si. Sendo o magnífico completo, que melhor exercício a cumprir que reificar a magnificência, no que de mais efetivo esta podia ter – o eu, celebrado pelo eu?
Qualquer outra celebração seria menor.
Detestava os elogios, as lisonjas, os panegíricos. Bastava-se de tal forma, que não só o incomodava ser valorizado por seres que considerava não estarem ao seu nível, como sentia não haver quem pudesse admirar. E sem ninguém para admirar, como receber um gesto de reconhecimento exterior?
Todavia, não sentia solidão. Suficiente o exercício de se olhar, sabendo o quanto era bom olhar-se.
Se o seu hábito se refletia na montra de uma loja – quando se dignava andar a pé na rua, como um comum – recebia de volta o reflexo e dizia, satisfeito: ”Magnífico! Magnífico!”.
Se se debruçava sobre um pequeno lençol de água provocado pela chuva, um charco, um lago, e via-se e revia-se, sabia que tudo estava bem, porque tudo estava bem.
E assim foram passando os momentos, os dias, os meses, os anos, num contínuo fluxo glorioso.
Envelheceu.
Um dia, ao levantar-se, olhando-se ao espelho, não se viu. Poisou os olhos nos móveis, na cama, no tapete. Estava tudo no lugar. Exceto a sua magnificência, que, por uma razão que desconhecia, não se refletia. Refletiu no que significava a ausência de reflexo.
Percebeu que era a sua própria ausência.
Depois de uma vida repleta de glórias supremas, chegara ao desaparecimento.
“Magnífico!” – pensou. “Magnífico!”. Magnífico!”.
E assim era, de facto.