Algumas vozes se ouviram, por ocasião da recente Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, invocando a mal-chamada «laicidade do Estado» para condenar os apoios que poderes políticos concederam a essa bela, fraterna e livre assembleia mundial de jovens religiosos, em Lisboa, exercendo legitimamente as suas liberdades fundamentais. Mas sem razão. Porque o Estado não é laico.

Perante a alternativa própria da liberdade religiosa, entre ser crente ou ser laico (laico no sentido de não crente), o Estado é neutro. Não é partidário de nenhuma das duas opções alternativas. Os cidadãos, pessoas humanas, podem ser crentes ou laicos. Crentes se, em sua consciência, acreditam em Deus; laicos se, em sua consciência, não acreditam em Deus. Perante esta liberdade de consciência, que é exclusiva de uma pessoa humana, o Estado é incapaz de escolher, porque não tem consciência humana-pessoal; e por isso é neutro. Tal como pelo facto de o Estado não poder escolher ser casado, não se pode concluir que ele é solteiro. Não é casado nem é solteiro. É neutro relativamente a esta escolha, exclusiva da pessoa humana.

A escolha entre ser crente ou laico é um só e mesmo acto humano racional e consciente de livre escolha entre duas alternativas. Obviamente, se não se pode escolher entre duas recíprocas alternativas, então não se pode escolher nenhuma delas. Se o Estado não pode escolher ser crente, então não pode escolher ser laico. E não pode fazer estas escolhas porque elas são actos exclusivos de inteligência e de consciência humana. Como diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 1.º, a razão e a consciência dos seres humanos são caracteres seus essenciais: «Todos os seres humanos […] dotados de razão e de consciência […]».

A laicidade não é uma passividade. Laico é o ser humano que exercita ativamente as suas capacidades humanas de livremente escolher entre crer ou não crer num Deus. Ser laico é uma ação, uma escolha, não é uma omissão, não é uma passividade. Ninguém dirá que, pelo facto de não ser crente, uma pedra é laica.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos, nem a Constituição da República Portuguesa, nem a Lei da Liberdade Religiosa Portuguesa dizem que o Estado é laico. Seria calino dizê-lo. Mas pode dizer-se que se tira destes influentes documentos jurídicos que o Estado é não-confessional, significando esta expressão que o Estado não tem capacidade jurídica para poder confessar ser crente nem para poder confessar ser laico. A opção religiosa é uma opção de liberdade de consciência da pessoa humana, não é uma opção política, nem é uma atribuição funcional a um qualquer ser ou organização, seja por via heterónoma seja por via autónoma. Como diz a Lei portuguesa da liberdade religiosa (Lei n.º 16/2001): «O Estado não adopta qualquer religião nem se pronuncia sobre questões religiosas». Se não se pronuncia, então não confessa. E se não confessa, é não-confessional — e não pode escolher (confessar) nem a crença religiosa nem a laicidade religiosa. Por isso o Estado não-confessional é irremediavelmente neutro.

Como já se disse, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não precisou de dizer que o Estado é não-confessional em matéria de liberdade religiosa. O que afirma categoricamente é que toda a pessoa humana tem direito à liberdade «de consciência e de religião», e «de manifestar a religião ou convicção [de convicção de consciência], sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos» (art. 18.º). Trata-se portanto de uma liberdade de «consciência de seres humanos», que (em matéria de religião) tanto podem optar por acreditar (os crentes) como por não acreditar (os laicos). A liberdade é a mesma, e uma só: a liberdade de religião. E é esta mesma e específica liberdade de religião que os crentes e os laicos igualmente exercitam, tanto quando uns optam por crer como quando outros optam por não crer. Assim, uns e outros estão em plena igualdade no exercício da sua liberdade e nem uns nem outros podem ser negativamente discriminados pelo Estado.

De onde resulta uma outra irrecusável conclusão: que se o Estado pode e deve garantir e pode e deve promover o pleno exercício das liberdades humanas-pessoais, incluindo a liberdade de consciência e de religião, então o Estado também pode e deve garantir e promover especificamente, por exemplo apoiando com subsídios em espécie ou financeiros, o exercício da liberdade religiosa inseparável de crentes e de laicos. Não sendo partidário nem de uns nem de outros.

A moderna ideologia da «laicidade do Estado» é uma infecção dos ideais da Revolução Francesa, por um vírus muito antigo agora renovado na sua mutação jacobina. A Declaração Francesa dos «Direitos do Homem e do Cidadão» (note-se aqui a distinção entre o ser humano universal e o cidadão nacional), assentou que (traduzindo em português): «A finalidade de toda e qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem […].» «Toda e qualquer sociedade, na qual não seja assegurada a garantia dos direitos [humanos-pessoais] nem seja determinada a separação dos poderes, não tem Constituição».

Ora a liberdade religiosa é um dos mais delicados direitos «naturais e imprescritíveis» do ser humano, e portanto a finalidade do Estado (que é uma associação política) é assegurar a sua garantia — o que passa não apenas pela sua garantia como «direito, liberdade e garantia», mas também ela sua promoção como «direito social cultural». Não há direitos humanos, inatos e invioláveis de liberdade («direitos, liberdades e garantias») a que não correspondam direitos humanos, inatos e invioláveis sociais («Direitos, económicos, sociais e culturais»). Nenhuma natural e inviolável liberdade humana-pessoal é indiferente, ou alheia, ou desprezável, ou discriminável para o Estado. Todas são pelo Estado dignas de garantia e de apoio. A tese da laicidade do Estado é uma inadmissível atribuição constitucional, ao Estado, de um poder-dever discriminatório da liberdade humana religiosa dos crentes, mas não da mesma liberdade humana religiosa dos laicos (não crentes).

A perseguição e a discriminação por causa da fé religiosa é coisa muito antiga. Mas é coisa muito de admirar neste nosso tempo, por parte de quem se declara defensor da igual dignidade da pessoa humana, dos inatos e invioláveis direitos e deveres humanos-pessoais constantes da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Portuguesa, enfim da democracia pluralista baseada no respeito pelas liberdades humanas-pessoais entre as quais se destaca a(s) liberdade(s) de consciência e de religião. Porque é significativo que a garantia da liberdade religiosa venha quase sempre junta com a garantia da liberdade de consciência, como no art. 41.º da Constituição Portuguesa, cuja rubrica é: «Liberdade de consciência, de religião e de culto». Uma só complexa específica liberdade?

A pessoa humana, como definiu Kant, é «fim em si mesma». Não se lhe podem atribuir nem negar finalidades: nem por atribuição de uma origem autónoma, nem por atribuição de uma origem heterónima. Mas o Estado não é uma pessoa humana; o Estado é uma entidade institucionalmente definida pela sociedade. Só tem os fins práticos que lhe são determinados constitucionalmente. E não tem por finalidade nem acreditar nem não-acreditar religiosamente. Tem por finalidade garantir as liberdades religiosas de todas as pessoas humanas naturais: igualmente das pessoas humanas crentes e das pessoas humanas não crentes (os laicos); igualmente a mesma liberdade religiosa de umas e de outras.

Assim se prova que a questão da «laicidade do Estado», tal como tem vindo a ser propagandeada pelos chamados movimentos laicos, pode ser apenas uma «virada do avesso» do anterior Estado confessional, e continuar a mesma questão: a de um Estado partidário perante as liberdades de religião, exclusivas da pessoa humana natural, não do Estado.

A Constituição não garante a liberdade da laicidade e muito menos do laicismo; porque não é preciso, uma vez que essa liberdade é a liberdade religiosa, e esta sim garante e promove. A mesma liberdade de religião tanto se exercita acreditando como não acreditando. Aliás, é assim que se exercita, porque senão não era alternativa, não era liberdade. Os laicos, quando se declaram como tais, fazem-no exercitando a sua liberdade de religião.

No art. 41.º, a Constituição Portuguesa reconhece e garante expressamente, no Título dedicado aos «Direitos, Liberdades e Garantias», «a liberdade de consciência, de religião e de culto». E logo desenvolve interpretativamente, afirmando que «Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa». Sendo esta interpretação expressamente complementada — note-se bem — com o reforço da garantia do «direito à objecção de consciência, nos termos da lei». Isto prova o grande melindre da liberdade religiosa, que é especificamente garantida pelo direito de objecção de consciência. Então e perante o melindre de consciência desta liberdade é que se quer proibir o Estado de apoiar o seu exercício quando num sentido de crença, e aceitar o apoio do seu exercício quando num sentido de não-crença, colocando assim o Estado como partidário dos laicos, que são os que exercem a sua liberdade religiosa de consciência negando acreditar em Deus? Isto é uma irracionalidade, além de ser uma inconstitucionalidade.