Há vinte anos que o euro começou a circular em Portugal, no arranque de uma Zona Monetária muito especial. As outras zonas monetárias, das quais os Estados Unidos são, por razões óbvias, a mais frequentemente citada e o termo de comparação omnipresente, coincidem com estados soberanos. O euro, como sabemos, não. O que pode parecer um detalhe, é certamente não apenas a principal característica distintiva do euro, como também a principal fonte das suas fragilidades.

A preocupação com este facto esteve presente, como era de esperar, logo na concepção da arquitectura inicial da moeda única europeia.  Sabia-se que os principais aderentes ao projecto exibiriam economias com ciclos menos sincronizados que, em regra, os estados norte-americanos ou as províncias canadianas—o que levantava a questão da diferente adequação de uma mesma medida de política monetária em diferentes geografias da mesma zona monetária—e que, em vez de estados federados existiam países independentes, mantendo decisão autónoma sobre a parte mais importante da respectiva política orçamental.  Ao contrário dos Estados Unidos, Canadá ou Austrália, os recursos orçamentais a nível “federal” seriam (e ainda são) relativamente diminutos. Foi por isso mesmo que se instituiu o que se esperava viesse a ser um forte mecanismo de coordenação entre os Estados-membros, supervisionando e controlando a política orçamental dos diferentes membros. Os problemas de funcionamento deste mecanismo, anteriores à crise financeira de 2008, mas evidentes durante a após a mesma, levaram, nestas duas décadas, ao seu aperfeiçoamento e à melhoria do mecanismo de supervisão multilateral do euro. No entanto, trata-se de uma obra nunca terminada, estando em curso discussões quanto à sua actualização, ainda que tal não seja objecto de devida atenção em Portugal. Hoje, não só a supervisão resulta de uma arquitectura superior à original, como foram instituídos novos mecanismos de resposta comum no caso da ocorrência de uma crise.

Novos avanços estão naturalmente dependentes não de questões técnicas, mas, sobretudo, da superação de entraves políticos. O afastamento que hoje se constata entre os interesses dos países do Norte e os do Sul (agravado pelo crescimento de um bloco de grandes países com dívida pública acima do PIB, como são a França, a Espanha e a habitual Itália), entre a necessidade do aprofundamento dos mecanismos de federação de interesses e o cepticismo crescente da opinião pública de muitos Estados-membros, condiciona o progresso possível, sobretudo num momento em que as condições parecem exibir os determinantes de uma mudança na política monetária, com impacto nas economias mais endividadas, como é o caso de Portugal ou das grandes economias do Sul da Zona Euro..

É esta necessidade de apuramento das regras de funcionamento e supervisão multilateral dos Estados-membros—de par com o mau desempenho de Portugal nos últimos 20 anos—que tem levado alguns, porventura muitos, a referir a suposta criação precoce do euro, alegando a impreparação das economias europeias para as restrições que uma moeda única impõe aos países que a partilham.  As dificuldades sentidas após a crise financeira de 2007/08 e as intermináveis vicissitudes que se lhe seguiram servem de justificação a esta tese.  Esquecem, porém, o caderno de encargos que vinha com a constituição desta nova zona monetária e com a melhoria do modelo institucional entretanto alcançada, nomeadamente no que respeita à instituição de mecanismos formais disponíveis para acorrer em situações de necessidade a países com problemas de pagamentos.

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No caso português, as razões do mau desempenho económico são sobretudo internas e têm a ver com factores bem conhecidos: o erro de análise do Banco Central e do seu governador à época, que desvalorizou o crescente desequilíbrio externo da economia com o correspondente endividamento de famílias em empresas, a incapacidade prática em melhorar o funcionamento dos mercados nacionais de bens, serviços e factores (se bem que integrados num conjunto mais amplo), o funcionamento sofrível de partes da Administração e da justiça económica e fiscal, a reduzida dimensão da esmagadora maioria das empresas, os erros de gestão empresarial e bancária, a fragilidade da maioria dos balanços das empresas no sector não financeiro, etc.  Tudo problemas que, numa primeira fase se acentuaram por culpa própria, e que não foram posteriormente devidamente endereçados e tratados. A anestesia monetária dos últimos anos, se bem que nos tenha dado mais tempo para os resolver, acabou por funcionar como justificativo prático para a contínua inação.

Os nossos erros internos não surgiram inesperadamente. São, aliás, um bom exemplo de como más políticas se perpetuam, mesmo quando a praxis demonstra a relevância dos custos que comportam. No caso vertente, é verdade que foi logo no início afirmado com total clareza que, para além das condicionantes em sede de política orçamental, dever-se-ia apostar fortemente em políticas microeconómicas que permitissem o aprofundamento do mercado único de bens, serviços, pessoas e capitais.  Não só a supervisão multilateral fracassou lamentavelmente, como muito pouco se fez pelo aprofundamento das várias vertentes do Mercado Único. Todavia, ter a inação e a resistência às reformas como atitude politicamente dominante 23 anos depois da criação do euro e 20 anos após a sua entrada em circulação sob a forma de notas e moedas, é verdadeiramente surpreendente. Mesmo a anestesia do quantitative easing não deveria ter apagado tão rapidamente a memória das razões da crise das dívidas soberanas que se seguiu à já mencionada crise financeira de 2008.

O caso português é, sob esta perspectiva, eloquente. O fim da actual política do BCE levará a muito maiores dificuldades na política orçamental um financiamento mais oneroso da dívida e a pressão da maior fatura de juros nas famílias e empresas endividadas (cujos passivos bancários excedem, em conjunto, mais de duas vezes o PIB).  É por isso que um observador atento da economia portuguesa tem dificuldade em entender o actual desinteresse sobre as discussões em curso relativas às novas regras orçamentais, assim como sobre as reformas estruturais que vamos atirando para cada vez mais tarde, numa procrastinação sem fim.

Se em Portugal temos um enorme leque de medidas a tomar, também em Bruxelas há muito trabalho a fazer.  Por um lado, é necessário que a Comissão e o Conselho percebam de uma vez por todas que devem garantir que se segue um caminho visando a sustentabilidade a prazo das finanças públicas dos Estados-membros em maior desequilíbrio, deixando de ser meros tabeliães da verificação formal de indicadores imperfeitos da situação de curto prazo, como se tem passado quase sempre até hoje. Por outro, há que avançar no sentido de uma maior unidade da gestão orçamental, incluindo a gestão corrente ao nível federal e nacional e uma solução integrada e consistente para o peso do passado.  Ter a França, Itália e Espanha do lado do problema (e não apenas as pequenas economias mais frágeis como em 2010/11) pode ser encarado como um seguro para uma pequena economia com fortes desequilíbrios como a nossa.  Mas não é um seguro perfeito.  E a nossa longa experiência histórica mostra que nunca ninguém fará por nós o que temos de ser nós próprios a fazer. Sobretudo, nunca o fará graciosamente. Somos um país independente no seio de uma zona monetária. Não somos o Mississipi da Europa, nem a União Europeia é um estado federal. Não esperemos milagres nem esmolas.