A morte de Belmondo, poucos dias depois da morte em Cape Town de um velho e querido amigo, trouxe-me de volta o tempo em que Jean-Paul Belmondo era um de nós. O tempo em que os livros, os filmes e quem por lá andava faziam parte do grupo, se metiam nas nossas conversas, se misturavam com as nossas vidas. Um tempo decisivo e glorioso, como é sempre o tempo em que nos construímos, como num Bildungsroman – nós à procura do mundo, e o mundo, e tudo o que ele traz de melhor e de pior, a surpreender-nos.

Nessas surpresas vinha, cheio delas, o cinema. Cinema à antiga, em salas monumentais e com direito a sessão completa: Actualidades, Desenhos Animados, Trailers, Anúncios, Primeiro e Segundo Intervalo, tudo. E aquele ritual das luzes que se iam apagando, dos sons que se iam calando para que o mundo parasse e recomeçasse.

O primeiro filme protagonizado por Belmondo foi À Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard, rodado no Verão de 1959 e estreado em 1960. Por cá, não sei se por causa da censura se por qualquer outra razão alheia à “repressão fascista”, só estreou uma década depois, ainda durante “a longa noite”, mas já na “Primavera marcelista”. De qualquer forma, À Bout de Souffle (em português O Acossado) ia tornar-se um filme de culto, um símbolo de ruptura. Tanto que, anos depois, François Truffaut escreveria: “Il y a le cinema avant Godard et aprés Godard”. Godard tinha então 28 anos e, como Orson Welles com Citizen Kane, começava bem.

Jean-Paul Belmondo também. Aos 27 anos já tinha desempenhado papéis secundários em filmes de veteranos – Les Tricheurs, de Marcel Carné,  Á Double Tour, de Claude Chabrol, e Sois Belle et Tais-toi, de Marc Allégret – e Godard quis fazer dele o protagonista de À Bout de Souffle. Seria o arfante Michel Piccard, um jovem delinquente que matava um polícia, passava o filme todo a fugir das autoridades e vivia com Jean Seberg (que queria ser jornalista mas que, entretanto, ia vendendo jornais nos Champs Elysées) uma paixão tempestuosa e trepidante que acabava mal. Piccard acabava pior, abatido pelos perseguidores, nos últimos minutos da fita.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esses anos 60 também foram, para muitos da nossa geração, anos À Bout de Souffle; anos de aventura política – ser da direita revolucionária em liceus e faculdades dominados pelo movimento associativo era uma escola de vida –; anos de grandes descobertas e leituras, de grandes conversas e amizades e de intermináveis tardes e noites de cinema.

E nesses anos, além do cinema americano e de um grande cinema italiano, havia sobretudo o cinema francês. Belmondo, que tinha sido boxeur e futebolista, entrou, nessa década de 60, talvez nuns 30 filmes. Filmes com a maior parte dos realizadores europeus do tempo, com Mauro Bolognini, em La Viaccia, e com Vittorio de Sica, em La Ciociara, contracenando com Sophia Loren. Em 15 anos, entre À Double Tour, de Chabrol (1959), e Stavisky, de Alain Resnais (1974), entrou em quase 40 fitas. Algumas delas marcantes, inesquecíveis, como Une Femme est une Femme, de Godard, Un Singe en Hiver (a partir do romance de Antoine Blondin), de Henri Verneuil, L’Homme de Rio, de Philippe de Broca, Pierrot le Fou, também de Godard, e Borsalino, de Jacques Deray.

Borsalino, com Belmondo e o seu grande amigo Alain Delon, era uma comédia de acção passada na Marselha dos anos trinta. Borsalino era o famoso chapéu criado em meados do século XIX por Giuseppe Borsalino, em Alexandria (Piemonte); um chapéu de feltro, de abas largas, que depois passou a produzir-se aos milhões. O feltro dos Borsalino era especial, feito de pele de coelho ou de lebre. Um símbolo de distinção.

Claude Déray fez o guião do filme a partir do livro de Eugène Saccomano, Bandits à Marseille. A história anda à volta de dois jovens gângsteres marselheses – Roch Sifredi (Alain Delon) e François Capella (Jean-Paul Belmondo) – que, depois de um choque inicial por causa de uma mulher que partilham, se tornam amigos, sócios e cúmplices e partem à conquista da cidade, ou melhor, da economia paralela da cidade, afastando (definitivamente) os poderosos dos seus lugares de poder. Borsalino saía claramente da tradição austera do “film noir”, à Jean-Pierre Melville (com quem Belmondo também trabalhou), ou das epopeias alegóricas do poder, como os Padrinhos, de F.F. Coppola, para se estabelecer como um híbrido de comédia e drama no sub-mundo do crime.

Em Borsalino, Delon e Belmondo usam os clássicos chapéus como paradigma do “marginal chique”. O burlesco e a alegria da cavalgada ou da cruzada daquela parelha de amigos, que partia ao assalto das fortalezas e monopólios dos caïds tradicionais, derrubando-os em guerras violentas e implacáveis, incendiando os bares dos rivais e metralhando-os com a famosa Thomson Camembert 1921, faziam-nos querer ter qualquer coisa daquele “viver perigosamente” e, sobretudo, daquela amizade indestrutível de parelha, bando ou seita.

Tinha 24 anos quando vi Borsalino pela primeira vez com o João Pinto Fernandes, que agora morreu em Cape Town, dias antes de Jean Paul Belmondo, e a quem me uniu uma amizade que começou por causa da política. Lembro-me que o que mais me empolgou no filme foi a amizade e a camaradagem entre Belmondo e Delon, naquela epopeia lúdica a que o décor dos anos trinta – os carros, os fatos, os chapéus – dava uma nota de nostalgia gatsbiana.

A amizade de Belmondo e Delon não era nem foi só no cinema. Os dois tinham já filmado Sois Belle et Tais-toi, de Marc Allégret, ainda na obscuridade dos papéis secundários. Em Borsalino já eram ricos e famosos e continuavam amigos, com Delon a chegar um dia às filmagens num helicóptero com as suas iniciais gravadas – para que, no dia seguinte, Belmondo lhe imitasse a proeza e a pose de estrela, chegando também de helicóptero (ainda que sem iniciais). E quando, depois, Belmondo apareceu de Ferrari, Delon pôde também apressar-se a fazer o mesmo.

Apesar de Belmondo ter processado Delon, cujo nome aparecia duas vezes no cartaz de Borsalino, contra o estabelecido no contrato, as co-estrelas reconciliaram-se depressa e não falaram mais nisso.

Também não falavam de política. Delon foi sempre um homem de direita, apoiante dos Le Pen, e nunca o escondeu. Belmondo abstinha-se, por princípio, de expôr as suas convicções ideológicas. Só abriu uma excepção nas eleições de 2017, no duelo Marine Le Pen / Macron, quando declarou que votava Macron porque “era contra os extremismos”.

Belmondo era assim. Como os grandes intérpretes, desempenhava bem papéis muito diferentes: de marginal solitário, em À Bout de Souffle, passava, um ano depois, a sacerdote durante a Ocupação, em Léon Morin, Prêtre, de Jean-Pierre Melville; um filme em que, de modo sóbrio, profundo e subtil, se punham muitas das questões que hoje se apresentam de modo frívolo, gritante e agressivo, para intimidar e silenciar as maiorias discordantes. Em Léon Morin, Prêtre, a história entre o Padre Morin (Belmondo) e a viúva Barny (Emmanuelle Riva) tem o encanto das grandes paixões e das grandes renúncias, lembrando o Breve Encontro, de David Lean.

Em 1965, com Godard, Belmondo encarnou o Ferdinand de Pierrot le Fou, a história de um pai de família que foge com a baby-sitter dos filhos (Anna Karina) e se entrega, perante a câmara, a intermináveis e eruditos monólogos. Em 1975, sob a direcção de Henry Verneuil, em Peur sur la Ville, fez de comissário Letellier, um polícia que persegue um serial killer que aterroriza Paris. No filme, há algumas cenas de grande risco, que Belmondo quis fazer pessoalmente, sem recorrer a duplos. Era um operacional. Consolidara-se como “cascadeur” em L’Homme de Rio, num dos papéis que mais o celebrizou em França, e seria nesse estilo que se iria fixar.

Delon seguiria outro caminho, um caminho de sedutor tranquilo, com papéis dramáticos, como em Rocco e os seus Irmãos e n’O Leopardo, de Visconti. Belmondo deixaria a pele do marginal trágico de À Bout de Souffle, do atormentado Padre Morin e do libertário Ferdinand de Pierrot le Fou, para se meter na pele do aventureiro generoso, do polícia investigador, do profissional anti-crime ou do semi-criminoso.

O que não o impediria de, depois dos 50 anos, fazer teatro – no Teatro Marigny, onde representou o Cyrano, de Rostand – ou de voltar ao cinema em 1995, como Jean Valjean, nos Miseráveis, de Hugo.

Em Agosto de 2001, teve um AVC que o debilitou, mas fez ainda um último filme, Un Homme et son Chien, em 2008.

Em França e na Europa, Jean-Paul Belmondo simbolizou esses anos 60 de conflitos políticos, de radicalidade ideológica, de revolução dos costumes, mas, apesar de tudo, anos livres de cancelamentos, de proibições, de assassinatos culturais e morais – e por isso anos de grandes amizades e de amizades improváveis, como a sua e de Delon, que preferiam não falar do que os separava para se centrarem no que os unia.

Quando vim para Lisboa nos anos 60, para a Faculdade de Direito, o João Pinto Fernandes estava nas Letras, em Germânicas, e era vice-presidente da FEN – Frente dos Estudantes Nacionalistas. Como o Belmondo, que tantas vezes vimos juntos, era extraordinariamente alegre, inabalável de humor perante as dificuldades. Licenciou-se em Letras, com uma tese sobre o Philip Roth, fez a tropa em Moçambique e ficou por lá. Em 1974, depois do 7 de Setembro, saiu para a África do Sul, onde nos voltámos a encontrar, quando a Zezinha e eu, vindos de Angola, também lá fomos parar. Éramos todos exilados: eu tinha um emprego e um salário de subsistência, como tradutor, e o João era vendedor numa companhia do grupo Rembrandt.  Quando o João nos aparecia com pacotes de cigarros Gunston era a alegria dos pobres, noite de cinema.

Continuei a vê-lo em Lisboa, em Angola, em Moçambique e na África do Sul, na África Austral onde desenvolvia um trabalho de liderança social e cultural junto das comunidades portuguesas.

Morreu em 27 de Agosto, a passear na praia de Cape Town, na margem do Atlântico Sul. Morreu uns dias antes do Belmondo que era um de nós, do Belmondo com quem, à semelhança de Delon, nunca tínhamos querido falar de política – até porque não queríamos pôr fim à nossa bela amizade.