Diogo Pacheco Amorim usa gravata? E se sim, usa gravata de seda azul com uma camisa com botões no colarinho? E no parlamento vai ficar de pé ao lado da cadeira a que teria direito como vice-presidente da Assembleia da República, caso os procedimentos parlamentares sejam alterados para o impedir de assumir esse cargo? Quem recordar o que foi a chegada do Bloco de Esquerda ao parlamento em 1999 e a passagem de Francisco Louçã a conselheiro de Estado em 2016 percebe que estas perguntas nada têm de original.

Para lá do transcendente assunto da gravata azul usada por Louçã quando se tornou conselheiro de Estado em 2016 (temática que deixo ao cuidado dos leitores pesquisarem à sua vontade), quero recordar como se processou a entrada do Bloco de Esquerda no parlamento em Outubro de 1999: Luís Fazenda e Francisco Louçã, os dois deputados então eleitos do BE, resolveram criar um incidente logo na primeira sessão do parlamento saído das eleições de 10 de Outubro, mantendo-se de pé como forma de protesto por lhes terem sido reservados dois lugares na quarta fila e não na primeira. O PS logo se disponibilizou para ceder dois lugares ao BE – um na primeira fila e outro na segunda – mas logo outro incidente foi criado pelos deputados bloquistas: queriam sentar-se na extrema-esquerda e não entre o PS e o PCP.

Uma vez resolvida a contento do BE a questão do lugares, começou uma prática parlamentar a todos os títulos inusitada: Francisco Louçã e Luís Fazenda eram regularmente substituídos por outros candidatos do BE. Chamaram os bloquistas a isto exercer o mandato em rotatividade. Dada a projecção mediática de que o Bloco gozava esta rotatividade criava a ideia de que o BE tinha um grupo parlamentar muito superior aos dois deputados de facto eleitos. Só quando em 2005 o seu grupo parlamentar chega aos 8 deputados é que os bloquistas abandonaram o recurso à rotatividade. Afinal já não precisavam dela para nada.

Duas décadas depois os protagonistas destes incidentes pretendem que em torno do Chega e do seu grupo parlamentar se faça um cerco, desenhem linhas vermelhas ou, certamente inspirados pelos sucessivos estados de excepção que vivemos à conta da pandemia, se levante uma cerca sanitária.

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Eles que foram largamente beneficiados pela observância das práticas e costumes do parlamento burguês vasculham agora com o zelo dos comissários que nunca deixaram de ser os regulamentos para excluírem quem lhes interessa!

Sejamos contudo honestos: que a extrema-esquerda diabolize o Chega não é de admirar nem de condenar, o que não se pode aceitar é que de imediato o país todo se sinta obrigado a repetir-lhes o mantra, para desse modo obter a versão ideológica do passe sanitário. A acreditar nestas profissões de fé, o parlamento português está repleto de leitores de Kant, pessoas de sólida formação científica e humanista e pensadores. No meio desta plêiade destacam-se ou vão garantidamente destacar-se pela boçalidade, estupidez, ignorância e maus costumes os eleitos pelo Chega. A esta falácia não escapou sequer alguém que acredito (e desejo) virá a ser um dos mais sólidos deputados do novo parlamento, Carlos Guimarães Pinto. O novo deputado da Iniciativa Liberal, com fundamento que se desconhece (para lá do óbvio: IL e Chega disputam entre si o espaço deixado livre pelo CDS) resolveu declarar que Pacheco Amorim não será um bom vice-presidente da Assembleia da República.

Mas se esta subalternidade ideológica da direita, da não esquerda ou o que se lhe quiser chamar já de si é um factor de distorção das nossas vidas, muito mais grave é que a direita não veja a situação de fragilidade em que se coloca ao embarcar na táctica do cerco ao Chega. Fragilidade não pelo Chega propriamente dito, cuja veia populista o leva a tirar o maior proveito dessa situação, mas sim porque partidos como o PSD ou a IL não percebem que amanhã eles serão o alvo dos novos cercos. Até porque são eles, sobretudo o PSD, que vai ser cercado a sério para deixar de ser visto como uma alternativa credível ao PS.

Assim, enquanto o país que quer ficar bem na fotografia anda para aí entretido a pedir cercos ao Chega, o PS trata do cerco que agora realmente lhe interessa: o cerco a Carlos Moedas. Porque o simples facto de a CML ter um presidente não socialista é visto pelo PS como algo contra natura e um desafio intolerável à sua hegemonia. Os próximos tempos serão duros para o presidente da CML. Depois de Marcelo se ter cercado a si mesmo e com o PSD em disputa interna, o PS, mais do que detento de uma maioria absoluta, tornou-se hegemónico. Não fosse Carlos Moedas e até acreditaríamos que nem podia ser doutra forma.

Quanto mais entretidos com o cerco ao Chega maiores as probabilidades de se acordar dentro doutro cerco.

PS. A cobertura noticiosa – ou mais propriamente a falta dela – do chamado Comboio da Liberdade no Canadá confirma a vigência de um novo tipo de jornalismo: aquele que se alimenta da fé nas não notícias. Recordo que o que começou como um protesto de camionistas canadianos contra as medidas sanitárias que lhes foram impostas ao abrigo do combate à Covid se transformou num movimento muito mais amplo. A crer na imprensa portuguesa no Canadá tudo se resume a um protesto dos anti-vacinas. Por outras palavras, vigora jornalismo que acredita que se não se noticiar um acontecimento ele pode desaparecer.