Nos últimos dias, os socialistas oficiais e os socialistas oficiosos que enchem os “media” e os partidos adjacentes ao PS descobriram o que o cidadão médio sabe desde o início dos tempos: José Sócrates não é um modelo de honestidade. Assim à primeira vista, é uma redundância tão grande quanto descobrir o Brasil em 1900 (ou descobrir em 2075 que o brasileiro Lula possui inclinações criminosas). E é uma coincidência espantosa que toda essa gente o fizesse em simultâneo, sobretudo tendo em conta que, além da divulgação televisiva dos interrogatórios, não houve nenhum facto jurídico que de súbito transformasse a vítima de conspirações malignas num exemplo de delinquência a expelir da sociedade. Sucedeu apenas que, uma bela manhã (ou duas), essa gente acordou com uma luz intensa, teve uma epifania e concluiu que o “eng.” Sócrates está mesmo metido em trafulhices sem fim.

Essa gente é dada a coincidências e misticismos. Durante anos, as exactas personalidades que querem exilar o “eng.” Sócrates em Timbuktu ou na cadeia também afirmaram em uníssono a sua indignação pelo martírio do ex-governante. À época, leia-se até há duas semanas, o “eng.” Sócrates era o maior estadista português depois de Viriato, um portento cuja competência e cuja “dinâmica” (?) inspiravam o ódio de “neoliberais”, a luxúria da imprensa sem escrúpulos e a perseguição a cargo de magistrados com “agenda”. Cada sólido indício de que o nível de vida do homem fugia um bocadinho ao nível dos seus rendimentos merecia discursos épicos acerca do carácter sagrado do segredo de justiça. Os “empréstimos”, os apartamentos, os amigos, as escutas, as férias, os familiares, os contactos, os compadres, os tráficos, as mulheres, as contas, as roupas, os levantamentos, os motoristas e os carros não suscitavam qualquer suspeita, só a certeza da má-fé dos inimigos do “eng.” Sócrates.

Hoje, os antigos devotos garantem que foram enganados e reclamam medalhas pela franqueza ligeiramente tardia, com que confessam o logro em que caíram. Criaturas que beneficiaram directa ou indirectamente, em géneros ou numerário, da rede de influências em que o “eng.” Sócrates se movia desataram a jurar pelos santinhos que nem sonhavam a geral ilicitude daquilo. É para levar a sério?

Podemos tentar. A argumentação central do Grupo de Lesados do “eng.” Sócrates passava por invocar, com voz firme, a presunção de inocência, então devida ao “animal feroz”. Agora, exigem que se presuma a inocência deles próprios. Eles, que acreditaram de alma lavada nas patranhas que o “eng.” Sócrates lhes contava sobre a origem dos seus proventos, ignoravam o óbvio, logo são inocentes. E ingénuos. E estúpidos que nem portas.

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É uma possibilidade a considerar. Afinal, falamos de espécimes propensos a acreditar no que calha. Se Fulana acredita que a militância em “causas” infantis se confunde com jornalismo, é possível acreditar que três ou quatro mil euros mensais permitem férias de 70 mil. Se Sicrano acredita que o PEC IV salvaria a nação, é possível acreditar na trivialidade de viver a expensas de um compincha a quem se entregou negócios públicos. Se Beltrano acredita que o socialismo se preocupa com as “pessoas reais” (por oposição às imaginárias?), é possível acreditar na honorabilidade das casas de Paris e Lisboa e dos fatinhos de Rodeo Drive e da fortuna de família e da amizade desinteressada. Crentes desta dimensão ficam impecavelmente em cultos religiosos, creches ou manicómios, mas não em jornais, sociedades de advogados, parlamentos ou governos. É de esperar que os inocentes presunçosos calculem as consequências da confissão inicial e confessem que, por volumoso excesso de idiotia, são inaptos para funções inadequadas a idades superiores a cinco anos – ou 25 em chimpanzés.

Por fim, há ainda a hipótese, meramente académica, de essa gente não acreditar em nada, excepto na disposição do eleitorado para acreditar em tudo – principalmente na inexistência de um sistema criminoso e profundamente corrupto que transcende o PS, embora prefira o PS no poder por facilidades logísticas e vocação. Ou que o linchamento brusco do “autor” de “A Tortura no Mundo” e de alguns dos respectivos ministros não é o típico sacrifício de uns comparsas a fim de salvar a quadrilha. Nas imortais palavras do dr. Marques Mendes, um símbolo justo dos bandos em questão, há o PS “mau” do “eng.” Sócrates, e o PS “bom” do dr. Costa. Ou de quem lá estiver no momento, a coordenar os arranjinhos e a “estabilidade”. Se o “eng.” Sócrates abrir a boca e perturbar ambos, prometo comprar-lhe a obra completa. Lê-la é outra história.

Nota de rodapé

Parece que há, ou houve, por aí um festival da Eurovisão, e que o mesmo inclui uma cantiga de Israel. Não me interessa. Interessa-me que alguém tenha promovido o boicote à cantiga em protesto contra o “apartheid israelita na Palestina”. Quem são os promotores da simpática iniciativa? Podemos chamar-lhes simpatizantes do terrorismo. Podemos chamar-lhes cúmplices da tortura a homossexuais e da violência sobre mulheres. Podemos chamar-lhes anti-semitas. E podemos chamar-lhes, por uma vez sem exageros, nazis. E acertar sempre.