1 Vamos começar pelo fim. O Ministério Público (MP) tem de mudar de vida. Tem de deixar, de uma vez por todas, o lirismo processual e o wisfull thinking de lado. Tem de se orientar pela lei e pelos factos que são possíveis de serem comprovados de acordo com o processo penal que exista em determinado momento — e não por aquele que os senhores procuradores gostariam que existisse.

Sem colocar em causa o princípio da legalidade democrática que tem de cumprir, o MP tem de uma vez por todas de orientar o seu trabalho para os resultados que é possível extrair em determinado processo em tempo útil.

Dito de outra forma: o MP tem de se concentrar em resultados exequíveis e numa gestão eficaz do seus recursos — tudo, repete-se, em tempo útil.

Para tal, é necessário alcançar dois objetivos prévios bastante claros:

  • o futuro procurador-geral da República (ou a futura procuradora-geral da República) tem de ter um perfil de claro de liderança e de experiência de coordenação de equipas e, quase tão importante como isso, tem de ter um perfil de comunicação interna mas também externa para procurar reconquistar a credibilidade perdida nos últimos seis anos;
  • tem de ser reposta a hierarquia, como manda a lei. Tem de ser clarificado de uma vez por todas que os diferentes dirigentes do Ministério Público nos respetivos graus hierárquicos — a começar pelo procurador (a) -geral da República — têm a obrigação de escrutinar o trabalho dos procuradores titulares das investigações e, em última instância, têm o poder legal de impor a sua visão sobre a estratégia de investigação a seguir, desde que tal decisão seja tomada de forma escrita para ser escrutinada internamente e pela opinião pública.

Só com um líder máximo que tenha uma visão clara daquilo que quer para a magistratura do MP, e a reposição da hierarquia — que desapareceu nos últimos seis anos —, é que será possível começar a resolver os problemas internos do MP que atingiram um novo cume com a decisão do Tribunal de Relação de Lisboa sobre a Operação Influencer.

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O império da lei, a base de qualquer Estado de Direito, aplica-se a tudo e a todos — e o MP não está isento de aderir ao mesmo.

2 Com a jactância que o caracteriza, Ferro Rodrigues, ex-presidente da Assembleia da República, já veio defender no Expresso que a procuradora-geral Lucília Gago deve ser demitida pelo Presidente da República ou que Marcelo Rebelo de Sousa deve sugerir que se demita.

Estou nos antípodas de Ferro Rodrigues há muitos anos e em muitas matérias — como muitos dos que me leêm sabem — mas não tenho qualquer problema em reconhecer que a imagem pública do MP foi posta em causa com esta decisão da Relação de Lisboa.

Contudo, daí até defender a demissão de Lucília Gago — quando a mesma está a cerca de seis meses de terminar o seu mandato — vai um passo que não me convence.

Compreendo, porque li todas as páginas do acórdão da Relação de Lisboa, o impacto mediático e público da decisão. Não vale a pena estarmos com paninhos quentes: a credibilidade do MP foi claramente posta em causa porque três juízes desembargadores afirmaram preto no branco que a operação de buscas e detenções de 7 de novembro, que está na origem da demissão do primeiro-ministro António Costa, não devia ter acontecido.

E porquê? Porque a Operação Influencer era naquela data uma mão-cheia de nada.

É evidente que essa mensagem causa um impacto político e mediático fortíssimo junto da opinião pública e coloca em causa, repete-se, a imagem e a credibilidade do MP.

3 Repare-se, a título de exemplo, que nenhum tribunal superior colocou em causa os fundamentos da Operação Marquês após a detenção de José Sócrates ou do caso Universo Espírito Santo — só para citar os dois processos mais importantes da democracia portuguesa que vão passar brevemente para a fase de julgamento. E, em nenhum desses casos, esteve em causa a queda de um Governo.

Portanto, se é a imagem e a credibilidade do MP que está em causa, naturalmente que a procuradora-geral Lucília Gago fica posta em causa — até porque quebrou uma uma regra do MP de não revelar o início de investigações criminais e esse é talvez o grande pecado daquele famoso comunicado da PGR de 7 novembro.

Tenho defendido desde o início que a informação relativa à extração de certidão para os serviços do MP no Supremo Tribunal de Justiça deveria ter sido dada pela PGR mas também é verdade que o MP não costuma revelar o início das investigações — e esse é um bom argumento para criticar politicamente Lucília Gago.

Mesmo não se demitindo, Lucília Gago está ferida de forma fatal na sua credibilidade porque não utilizou os seus poderes hierárquicos para fiscalizar condignamente o trabalho dos procuradores titulares do caso e evitar muitos dos problemas que vieram a ser detetados no escrutínio no Tribunal Central de Instrução Criminal e do Tribunal da Relação de Lisboa.

Faço um balanço negativo do mandato de Lucília Gago pela total ausência de liderança que manifestou. Contudo, não defendo a sua demissão porque tal abriria um precedente perigoso em termos de estabilidade institucional do Ministério Público. Ou seja, a partir do momento em que o MP perdesse novos recursos relevantes na Relação de Lisboa, passaria a existir o padrão de pedir a demissão do procurador-geral da República a torto e a direito.

Faltam seis meses para Lucília Gago terminar o seu mandato e o mesmo deve ser levado até ao fim em condições mínimas de dignidade. Outra questão — que duvido a 99% que se venha a colocar — é saber se a própria procuradora-geral entende que não tem condições para continuar.

Estou à vontade para criticar Lucília Gago por muitas vezes defendi no espaço público que não via — como continuo a não ver — qualquer controlo político das investigações criminais. O perfil isolado de Lucília Gago também facilita essa conclusão mas, acima de tudo, a procuradora-geral não está imune ao império da lei.

4 Nesta análise do impacto colossal da decisão da Relação de Lisboa, eu não me esqueço do papel verdadeiramente lamentável que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministro António Costa tiveram no afastamento de Joana Marques Vidal e na sua substituição por Lucília Gago.

Disse-o na altura, repeti várias vezes nestes seis anos e volto a chamar o tema à colação: a substituição de Joana Marques Vidal só aconteceu porque Marcelo e Costa queriam. Se foi o primeiro que fez questão disso (como diversas fontes próximas do processo indicam) ou se foi o socialista, é irrelevante para o atual contexto.

Joana Marques Vidal foi a melhor procuradora-geral da República desde Cunha Rodrigues. Fez um trabalho extraordinário em termos globais e, por exemplo, sempre fez questão de estar informada e de acompanhar e  escrutinar os processos mais mediáticos na área do crime-económico.

E, mais importante, nunca teve receio de usar os vastos poderes hierárquicos que qualquer procurador-geral da República tem. Basta recordar que ameaçou por escrito afastar o procurador Rosário Teixeira se a acusação não fosse deduzida no prazo que a própria Joana Marques Vidal tinha determinado. Isto é ter capacidade de liderança e poder decisão. Coisa que Lucília Gago nunca demonstrou.

Porque razão Marcelo Rebelo de Sousa fez questão de insistir com António Costa para afastar Joana Marques Vidal? É uma das perguntas mais importantes dos últimos seis anos que ainda não teve qualquer resposta.

Será que Marcelo tinha problemas com alguma decisão do MP sobre algum processo criminal concreto? Será que era António Costa que não tinha gostado da detenção de José Sócrates um dia antes do início do seu primeiro Congresso do PS como secretário-geral do PS? Ou outras razões?

Independentemente da razão, certo é que Marcelo e Costa aliaram-se para afastar uma procuradora-geral competente — com a desculpa esfarrapada do limite de um único mandato — e substituí-la por alguém sem perfil para liderar, nem o clube recreativo da sua zona de residência.

5

Não vou analisar o que poderá acontecer nos autos da Operação Influencer ou em relação à candidatura de António Costa ao Conselho Europeu mas vou regressar ao princípio deste texto para concluir minha visão.

O império da lei — que os ingleses baptizaram como “rule of law” — significa que todos os cidadãos estão sujeitos à lei e isso acaba por ser a melhor defesa contra o arbítrio e a autocracia.

Se o princípio da igualdade na aplicação da lei é tão claro e simples — ninguém pode ser discriminado mas também ninguém pode ser favorecido e beneficiar de regras especiais —, não deixa de ser extraordinária toda a pressão política e pública para que os autos do inquérito aberto contra António Costa seja rapidamente arquivado.

Nesse campo, as declarações do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa — que já está a ver António Costa em Bruxelas — são mais um episódio polémico da sua relação com o princípio da separação de poderes.

O MP tem de ser muito pragmático, inclusive em relação às suspeitas relacionadas com António Costa. Deve tomar uma decisão célere no estrito cumprimento da lei, apreciando livremente a prova que está nos autos e fundamentando qualquer decisão que venha a tomar, respeitando assim o Estado de Direito.

Esse será o presente próximo. Sobre o futuro, nomeadamente sobre a nomeação de um ou de uma substituta de Lucília Gago, vamos ter de esperar até Outubro.

Uma coisa é certa: esperemos que desta vez o Presidente Marcelo olhe com a atenção devida ao nome que irá substituir Lucília Gago e que o primeiro-ministro Luís Montenegro tome o processo em mãos — e não delegue na ministra da Justiça. O MP está ferido na sua credibilidade mas é possível reverter a situação. Vai demorar algum tempo mas é possível fazer esse trabalho.