1 Tendo nascido um mês antes do 25 de Abril de 1974, viverei sempre a circunstância de ter a mesma idade da data da fundação do regime democrático. Não me recordo obviamente do dia do golpe de Estado nem dos primeiros anos da democracia mas muitas das minhas primeiras memórias estão ligadas ao significado e às consequências do 25 de Abril.

Estão ligadas ao país pobre que me recordo da minha infância em Monchique, no Algarve. Estão ligadas às campanhas eleitorais da década de 80 que fazia com o meu pai por todas as localidades daquela linda serra, de muitos comícios à luz de candeeiros de petróleo em que as promessas passavam por eletricidade, claro, mas também por saneamento básico e água canalizada. Estão ligadas às conversas que tinha com os meus avós sobre como era a vida na aldeia deles durante o Estado Novo, sobre a base alimentar miserável de muitas vizinhos, sobre o tempo que o meu avô demorava da aldeia de Marmelete até Lagos para comprar e vender o seu negócio mas também sobre o analfabetismo que reinava na sua geração e a iliteracia que persistia na geração dos meus pais, confinada que estava à 4.ª classe e pouco mais.

Tudo isto fez com que a minha paixão pela História desde a juventude tenha começado pela leitura e estudo de tudo o que tivesse a ver com o Estado Novo e com o 25 de Abril. E rapidamente aprendi que aquela realidade que me era mais próxima, era a realidade — com maior ou menor diferença — em todo o país. Como também aprendi, com o passar do tempo, que muitas pessoas (homens e mulheres) um pouco por todo o Alentejo, mas com especial enfoque no Baixo Alentejo (uma região próxima da vila de Monchique), eram claramente exploradas por gente com espírito feudal e com a conivência das autoridades e da Igreja Católica.

Tudo isto serve para dizer que tenho uma consciência muito clara do que significa o 25 de Abril de 1974, do caminho seguido pelo regime democrático, das suas diferentes fases, das suas conquistas mas também de alguma estagnação e do que ainda falta fazer.

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2 Há algo que o regime do 25 de Abril trouxe a Portugal o que nenhum outro conseguiu: a Democracia, o Estado de Direito e o progresso económico e social que costuma estar associado à conjugação da liberdade com uma sociedade de mercado que respeita os direitos humanos e as liberdades cívicas.

Essas não são conquistas de 1974 mas só são possíveis devido à data fundadora do 25 de Abril — corrigidos que foram os excessos revolucionários, normais ao fim de 48 anos de ditadura.

Podemos olhar para diferentes prismas e dados socio-económicos, como estes da Pordata, para compararmos o país de 1974 e o de 2024 e chegamos facilmente à conclusão que está muito melhor:

  • Seja na Educação — em que o acesso universal foi assegurado, o anafalbetismo foi reduzido a algo residual e geracional e o número de estudantes universitários disparou: 446.028 alunos em 2023 contra apenas 81.582 em 1978;
  • Seja nos inúmeros indicadores da Saúde — em que o número de médicos por cada 100 mil habitantes quintuplicou, o enfermeiros são quase o triplo, em que a mortalidade infantil desceu de 38% para apenas 3%, entre muitos outros dados.
  • Seja nos Transportes — em que subimos de 66 km para 3.115 km de autoestradas, já para não falar da rede rodoviária nacional finalmente construída em termos europeus e em que deixou de ser suplício uma simples deslocação de uma região para a outra. Nesta área há um ponto negativo claro: o desinvestimento na ferrovia quando os países mais avançados da União Europeia fizeram precisamente o contrário;
  • Seja na criação de um verdadeiro Estado Social em que a criação de uma Segurança Social universal e o desenvolvimento da Caixa Geral de Aposentações permitiu construir uma proteção social que abrange toda a população;
  • Seja na criação de uma economia mais competitiva que passou por uma profunda reestruturação dos diferentes sectores de actividade em termos de empregabilidade: de 35% da população na agricultura e pescas, de 34% na indústria e 31% nos serviços passamos para apenas 3% no setor primário, 25% no secundário e 72% no terciário. O próprio valor bruto acrescentado setorial passou de 49% no serviços, de 40% na indústria e de 11% nos serviços para 77% nos serviços, 21% na indústria e apenas 2% na agricultura. Isto tudo permitiu-nos equilibrar a balança comercial mas mesmo assim com uma excessiva dependência dos serviços, nomeadamente do turismo.
  • E passou por um forte incremento do poder de compra dos portugueses que é 20.º de toda a União Europeia e passou em termos nominais de 16 euros para 820 euros em termos de salário mínimo. É verdade que, se descontarmos a inflação, esses 16 euros corresponderiam a 629 euros. Mesmo assim, um forte incremento.

Acresce ainda a realização da descolonização — feita nas condições possíveis — mas que permitiu o fim do último e anacrónico império colonial europeu em África e a autodeterminação e independência dos povos de Angola, de Moçambique, da Guiné-Bissau, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe e, mais tarde, de Timor-Leste.

A construção de um Estado de Direito no qual todas as liberdades cívicas e políticas foram repostas, em que o pluralismo político foi assegurado, em que o respeito pela liberdade de expressão, pela liberdade de imprensa e pela liberdade de reunião passou a ser lei.

E, last but not least, a construção de um sistema de administração da justiça em que o respeito pelo acesso ao direito e pelas liberdades e garantias dos cidadãos está assegurado na lei e na prática.

3 A construção da democracia teve várias fases mas podemos dizer que se tornou efetiva com a revisão constitucional de 1982 que extinguiu a tutela militar sobre o poder civil e eleito pela população. Mas nada foi fácil.

Depois de encerradas as hostilidades revolucionárias com o 25 de novembro de 1975, as primeiras eleições legislativas de 1976 inauguraram uma fase que foi até 1985 e que ficou marcada por condições económicas muito adversas.

Duas intervenções externas do FMI, taxa de inflação galopante que chegou a atingir os 28,5% em 1984, perda muito significativa do poder de compra de todos os portugueses, um Estado bloqueado, degradação social, corrupção endémica, criminalidade violenta e até uma organização terrorista (as FP-25) à solta — é um breve retrato do final dos 70 e até 1985.

A situação estabilizará com a entrada de Portugal para a Comunidade Económica Europeia e com os governos de Cavaco Silva que trarão prosperidade e crescimento económico às famílias e empresas com a ajuda dos fundos europeus mas não só. O espírito reformista do cavaquismo não dependeu dos fundos mas sim de uma visão política e económica clara sobre o rumo a dar ao país nos seus diversos sectores.

4 O regime nascido a 25 de abril cumpriu uma parte dos seus objetivos. Permitiu a construção de uma democracia sólida em que os direitos fundamentais e as liberdades cívicas são respeitadas, construiu um tal progresso económico e social que o nosso país há muito que não faz parte do grupo dos países subdesenvolvidos e conseguiu a entrada na União Europeia, permitindo a transição de um país imperial e colonialista de costas voltadas para a Europa para um Estado moderno e com os ponteiros do relógio acertados com os valores civilizacionais europeus.

Mas não atingiu um dos seus objetivos essenciais, praticamente dado como certo depois do crescimento económico extraordinário promovido pelos governos de Cavaco Silva: alcançar a média do poder de compra da União Europeia.

Sempre foi esse o sonho da democracia mas ainda não foi cumprido. Recuperamos uma trajetória ascendente com o governos de António Costa mas mesmo assim ainda não temos sequer 80%. Em 2022, situou-se nos 78,7% da média europeia.

Como também não foi cumprido o crescimento económico sustentável expectável da segunda metade dos anos 80 e de todos os anos 90. Depois de taxas de crescimento de 6%, estagnamos em taxas de crescimento residuais desde o início da década de 2000.

Não há dúvida que a estagnação económica dura desde a saída de António Guterres do poder e que, até agora, ainda ninguém conseguiu encontrar um novo modelo económico e social para voltarmos a crescer de forma sólida e sustentável. E esta é uma das razões para o crescimento dos populismos, nomeadamente do Chega.

5 Sendo eu um algarvio de Monchique a residir há mais de 30 anos em Lisboa, certamente que farei parte do novo grupo sócio-económico descoberto pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa: o “urbano-rural com apontamentos rurais”.

Um grupo que, juntamente com os “lentos” “asiáticos” certamente que não estarão capacitados para avaliar as barbaridades e disparates que Marcelo fez questão de dizer aos correspondentes dos principais media europeus e internacionais.

Mas tal não me incomoda e não me vai impedir de dizer a minha opinião.

É verdadeiramente confrangedor tentar analisar a última polémica criada por Marcelo Rebelo de Sousa. Sinto-me constrangido enquanto português ao perceber que o ‘meu’ Presidente da República parece de cabeça perdida com a sua popularidade em baixa (muito por causa do caso das gémeas, ao ponto de revelar que cortou relações com o filho) e não cumpre os mínimos olímpicos de diplomacia, bom senso e prudência.

É muito triste ver a imagem do nosso país ser enxovalhada — sim, enxovalhada — junto de cidadãos estrangeiros por parte de quem deveria ser o primeiro a defender a imagem de Portugal no mundo.

Como é possível um Presidente da República referir-se num jantar com correspondentes internacionais dos principais media europeus e internacionais ao primeiro-ministro Luís Montenegro como uma “pessoa que vem completamente de um país profundo” que será alguém “urbano-rural, urbano com apontamentos rurais“ ou alguém que “tem o tempo do país rural, embora urbanizado”? Como é aceitável que Marcelo se refira a um ex-primeiro-ministro como António Costa como alguém “lento” porque “era oriental”?

Ou que ande a passar recados a jornalistas estrangeiros sobre a procuradora-geral da República em vez de a chamar ao Palácio de Belém e dizer-lhe as coisas na cara? Foi Marcelo quem decidiu inexplicavelmente, por proposta de António Costa, afastar a competente Joana Marques Vidal do cargo de procuradora-geral para nomear Lucília Gago, uma pessoa sem qualquer perfil para o cargo. Logo, tem legitimidade para chamá-la Belém. Será que é a falta de coragem que explica a hesitação?

6 Quase tão mau quanto os insultos que Marcelo resolveu dirigir a Montenegro e a Costa, estão as declarações sobre as alegadas reparações pelo colonialismo português. “Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isto”, cita a agência Reuters.

Num momento em que estão em Lisboa vários altos dignatários de países lusófonos para assistirem às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o timing para estas declarações é altamente questionável. Além das declarações não terem sido concertadas com o Governo, a que propósito faz sentido que o Chefe de Estado comece a reconhecer alegados crimes e custos antes de uma negociação?

E fala agora para que a imagem do país seja ainda mais enxolhada com declarações de países amigos, como já aconteceu com o Brasil?

Não consigo compreender o que Portugal tem a ganhar com uma declaração do seu Chefe de Estado sobre um tema tão sensível como este. E que o faça desde logo a abrir o livro de cheques e quando estamos a comemorar os 50 Anos do 25 de Abril.

É mesmo caso para dizer: os 50 anos do 25 de Abril mereciam ter outro Presidente da República.

Texto alterado às 9h53