Segundo a lenda, depois de os gregos derrotarem os persas em Maratona, foram enviados dois corredores a Atenas para anunciarem a vitória. Um chamava-se Fidípides, o outro era Simonebílipedes. Cada um tomou um caminho diferente, de modo a garantir que pelo menos alguém chegaria ao seu destino. Simonebílipedes era o mais veloz, aquele em quem os gregos depositavam as maiores esperanças. Mas, logo no início, foi assaltado por pensamentos negativos. “Será que vou conseguir? Eles estão mesmo, mesmo a contar comigo. E se cair e torcer um pé? E se me enganar no caminho e for ter a Corinto? Entrego a mensagem à mesma? E se os coríntios se estiverem a borrifar para a batalha? E se se rirem de mim? E se chegar a Atenas, mas não conseguir falar? Posso ter um ataque de soluços. E se for atacado por um tigre? Não há tigres na Ática, mas nunca se sabe. E este calor? Capaz que faça mal. Não devia ter enchido o bandulho de feta. Ainda vou ficar com dor de burro. Pior: e se me transformo num burro e ninguém perceber os meus zurros? Por outro lado, e se corre tudo bem e fico a ser apenas o Simonebílipedes que anunciou a vitória em Maratona? Deixo de ser o Simonebílipedes que também é pai, filho, irmão, vegan, todas as minhas facetas obliteradas pela façanha? Passo a ser definido apenas por isto. E se depois esperam que faça o mesmo em todas as batalhas? Ó, meu Zeus! Tantas dúvidas! Tanta pressão! Esta corrida faz-me mal à cabeça. Julgo que o melhor é resguardar a minha saúde mental e voltar para casa.”
Entretanto, Fidípides chega a Atenas, grita “Vencemos!” e falece. O que acabou por ser melhor para ele, que assim não foi obrigado a assistir, no mês seguinte, à entrada triunfal de Simonebílipedes em Atenas (a andar descontraidamente, nem sequer veio a trote), vitoriado por ter tido a coragem de salvaguardar a sua saúde mental, em vez de terminar a tarefa que lhe tinha sido confiada.
É natural que o leitor não conheça esta lenda. Por duas singelas razões. A primeira é que não há razão para recordar alguém que desiste do seu objectivo. A segunda é que a lenda não é bem uma lenda, é mesmo uma patranha que acabei de inventar para falar do abandono de Simone Biles e da quantidade de gente que louvou a coragem dessa desistência.
Para todos os efeitos, Simone Biles esteve bem. Momentos antes de ir fazer cinco piruetas, achou que talvez não fosse boa ideia arriscar o pescoço e, pela primeira vez na sua carreira de ginasta, fez exactamente o que eu também faria – o que, por si só, exclui “coragem” da equação. Nada que a Simone faça que eu também consigo fazer (e desistir é uma coisa que eu faço muito bem) pode ser qualificado como coragem.
Coragem foi o que demonstrou nos milhares de vezes em que, aí sim, fez acrobacias perigosas. Desta feita, não foi corajosa, foi normal. E a normalidade, não sendo vergonha nenhuma, não é razão para aplauso. (“Ponham os olhos na atitude perfeitamente banal desta rapariga!” é algo que só ouviríamos no sketch “Bycicle repair man” dos Monty Python). Das outras vezes foi uma super-mulher, agora foi só mulher. Não há medalhas para isso nos Jogos Olímpicos. Ainda. Das duas, uma: ou coragem é fazer os saltos mortais, ou é não fazer os saltos mortais. Ambas ao mesmo tempo é que não é possível. Não existe cá coragem de Schrödinger.
Há uma razão para se exigirem os chamados mínimos olímpicos. Para ter a certeza de que quem lá está é mesmo excepcional. Biles é excepcional a fazer ginástica, não há dúvidas. Aí, a sua coragem é inquestionável. A não fazer ginástica por ter receio, é igual a toda a gente. Reconhecer os próprios limites é natural, todos o fazemos. Superá-los é que é notável. Por isso é que Biles é uma ginasta única. E reconhecer limites não pode ser critério para admiração nas Olimpíadas. (Até porque não é um critério muito fiável. Num dia, pedem-nos para bater palmas a Biles, por reconhecer os seus limites. No dia seguinte, pedem para bater palmas a Laurel Hubbard, a transexual neozelandesa que vai participar na competição feminina de halterofilismo, por ignorar os seus. Decidam-se, por favor).
O Homem-Aranha enfrenta o Duende Verde e o Dr. Octopus para salvar um autocarro escolar de cair duma ravina? Muito bem! Que valente! Inacreditável! Como é que consegue? O Peter Parker tem dificuldade em abrir um frasco de compota, porque a tampa está húmida? Eh, pá, lamento, mas isso também eu. Não espere palmas, só porque tem o hábito de as receber pelas suas façanhas.
No entanto, ao que parece, fica mal falar deste tema sem referir que Biles foi corajosa. O que, curiosamente, não sucede sempre que uma atleta desiste de uma prova por não se sentir confortável fisicamente. Aí, nunca dizemos que foi corajosa. Mas, como desta vez foi jogada a carta da saúde mental, não é suposto reagirmos com a impassibilidade com que tratamos a saúde física, como mais uma de entre muitas dificuldades que os desportistas profissionais ultrapassam.
O que é estranho: querem que a saúde mental dos atletas receba o mesmo cuidado que a sua saúde física, mas negam-lhe o mesmo escrutínio (não se deve questionar os auto-diagnósticos) ao mesmo tempo que exigem mais protecção. Se um atleta abandona uma final porque sente umas pontadas na coxa e isso pode vir a acabar em rotura muscular, não reagimos. Quando muito, pensamos que devia ter feito mais alongamentos. Mas se o atleta desiste porque se sente frágil emocionalmente, então é um campeão, ao contrário dos outros bárbaros insensíveis que insistem em competir. Porque competir aleija e aleijar é mau.
Isto acontece porque – e é aqui que inevitavelmente acabaríamos – mexe com “sentimentos”. E vivemos numa época em que os sentimentos não se podem discutir. As sensações nas nossas cabeças sobrepõem-se à realidade fora delas e ai de quem ponha isso em causa.
Sempre soubemos que a alta competição é exigente e tem efeitos negativos em quem a pratica. Aliás, é por considerarmos que a alta competição faz mal e que, por isso, só os atletas excepcionais a conseguem praticar, que gostamos de assistir. Admiramos gente que se supera. Há uma razão para um Sporting–Benfica ser jogado num estádio cheio e o jogo de amigos ao Domingo de manhã, não.
Entretanto, agora descobrimos que a alta competição também faz mal à cabeça – que surpresa! E por isso já não a podemos valorizar. Temos é de acabar com ela. Para ninguém se superar mentalmente, que é prejudicial. Traumatiza quem se supera e também quem é superado. Gera dói-dóis a rodos.
O que explica o entusiasmo com que foi recebida a decisão dos saltadores de Itália e do Qatar, que resolveram dividir a medalha de ouro, em vez de a disputar numa espécie de morte súbita. Desistiram de competir e de tentarem ser os melhores. Mais cedo ou mais tarde, alguém vai declarar que foi um grande acto de coragem e louvar a valentia destes dois atletas. Parece que o lema olímpico agora é Citius, Altius, Lambecus. Lamento, mas isto não é espírito olímpico, é escotismo. Ainda tenho esperança de que o Comité Olímpico diga: “Estávamos a brincar. Isto era uma proposta salomónica, para ver se algum de vós era um digno campeão, com vontade de disputar até ao fim. Como nenhum é, não há medalha para ninguém”. Mas para isto era preciso ter coragem. Da verdadeira.
P. S.: Entretanto, soube-se que, afinal, Simone Biles vai disputar a final de trave. Depois da coragem de desistir, a coragem de competir. Felizmente, pode contar com a coragem das pessoas em terem duas opiniões contraditórias ao mesmo tempo, sem medo do ridículo.