Segundo o Professor Victor Davis Hanson, o mundo que Donald Trump encontrou quando, em Janeiro de 2017, tomou posse é muito diferente daquele de há três ou quatro décadas atrás, dos tempos áureos da liderança dos Estados Unidos da América (EUA) por Ronald Reagan. As primeira décadas do século XXI caracterizam-se pela multiplicação de actos terroristas, pela instabilidade do mundo muçulmano, pela ambição do Irão em tornar-se a potência hegemónica do Médio Oriente, pela aspiração da China em tornar-se mundialmente hegemónica e pelo aumento da frequência das ameaças da Coreia do Norte dirigidas aos EUA, ao Japão e à Coreia do Sul. Segundo o Professor Hanson, “Trump é muito directamente inspirado por Ronald Reagan” e recordou que o candidato republicano de 2016 escolheu o “Make America Great Again” como lema da sua campanha presidencial e que nunca dispensou a fórmula “peace through strength”: “restaurar o poderio americano seria a condição necessária para uma paz global e pensou, como Reagan, que existe o bem e o mal”. É com esta capacidade de fazer transposições históricas que Hanson dialoga com Guy Millière. Este último, um politólogo francês que reside nos EUA há dez anos, divulgou uma conserva com Victor Davis Hanson outra com Martin Anderson na sua obra “Aprés Trump”, publicada em 2020. Estas duas conversas estão no capítulo sobre a “doutrina Trump”.
A expressão “realismo ético”, utilizada por Martin Anderson na sua comunicação a Millière, pode muito bem aplicar-se, segundo Millière, à visão de política externa de Donald Trump. Se, por um lado, Trump é céptico quanto à possibilidade de mudar as culturas e os regimes políticos, acredita também que os EUA têm amigos, amigos esses que são ameaçados por estados e grupos (tradicionalmente reconhecidos no direito internacional, tais como os insurgentes e os beligerantes). Com efeito, os EUA devem confrontar o mal e manter a confiança dos seus amigos. Victor Davis Hanson opina que Trump não pode ser considerado isolacionista: simplesmente “pensa primeiro na América, recusa que o exército americano se envolva em guerras intermináveis e vãs e escolhe outros meios que não a guerra, como Ronald Reagan fizera no seu tempo”.
Numa entrevista de Fevereiro de 2024 ao ex-vice-primeiro-ministro da Austrália, John Anderson, Victor Davis Hanson explica como é que o pensamento de Trump para a política externa norte-americana, que foi aplicado durante o seu mandato enquanto presidente, pode ser mal compreendido e confundido precisamente com uma mundivisão “isolacionista”.
Hanson sugere que se compare os quatro anos da administração Trump com os três anos (e alguns meses) da administração Biden. Defende Hanson que, enquanto Trump era presidente, a NATO “rearmou-se mais eficientemente”, Putin foi dissuadido de invadir a Ucrânia, não se permitiu que a China considerasse tão aberta e frequentemente invadir ou bloquear Taiwan ou que vigiasse os EUA através de balões, não se criaram condições para que o Hamas achasse que valia a pena atacar Israel com a magnitude que conhecemos em Outubro de 2023 e não se permitiu que qualquer promessa de retirada do exército americano do Afeganistão levasse à humilhação dos EUA. Como relembra Hanson, Trump quis sempre saber do que acontecia aos aliados dos EUA e assegurar de que os EUA continuavam a ser uma potência de confiança. Para Trump, como exemplifica Hanson, o lançamento de mísseis e as ameaças de Kim Jong-un não eram um problema circunscrito à Austrália, ao Japão, à Coreia do Sul e a Taiwan. Assegurou que os EUA tivessem uma palavra a dizer ao rufia norte-coreano.
Trump também nunca se revelou indiferente ao Médio Oriente e ao terrorismo que assolava esta região, tendo ordenado um bombardeio que matou Qassem Soleimani, chefe de uma unidade especial da Guarda Revolucionária do Irão e, até ao seu assassinato em 2019, um dos homens mais poderosos deste país disseminador de terrorismo.
Quando foi desencorajado por alguns políticos europeus a abater membros do Grupo Wagner, uma organização paramilitar de origem russa ao serviço da mente diabólica de Putin, Trump, depois de ser informado de que esse grupo estava a provocar aliados dos EUA na Síria, mandou abater duas dezenas dos seus membros. Depois de fazer estas observações, Hanson, sugeriu que Trump é um jacksoniano (referência a um dos primeiros presidentes dos EUA, Henry Jackson), o que significa que Trump acredita que os EUA devem estar vigilantes e armados no cenário mundial.
Por seu lado, Biden parece mais relutante em mostrar a força e a confiança dos EUA no mundo. Foi Donald Trump que, em 2021, quando a Rússia quase encerrou o espaço aéreo sírio aos aviões de caça israelitas que obstruíam (e obstruem) as ações militares do Irão na Síria, nada disse a Vladimir Putin? Quando a Rússia permitiu a entrega de equipamento militar e de petróleo iraniano ao Hezbollah libanês para a Síria, foi Trump que ficou calado? Foi Trump que, em Maio de 2021, levantou as sanções contra a construção do gasoduto Nordstream 2 e abriu caminho para que países como a Alemanha se tornassem energeticamente dependentes da Rússia? Foi Trump que admitiu que uma “incursão militar menor” russa na Ucrânia seria aceitável aos olhos dos EUA? Não foi. Foi Joseph Biden.
Um artigo que responde de forma límpida às suspeitas de que Trump, de alguma forma, trará de volta uma abordagem isolacionista à política externa norte-americana é um dos mais recentes artigos do historiador escocês Niall Ferguson. “Trump, Vance’s doctrine of military realism a sign of hope for Ukraine — and not isolationist” foi publicado a 23 de Julho de 2024 no New York Post, cinco dias depois do término da Convenção Nacional do Partido Republicano.
O debate sobre se o Partido Republicano deve ser considerado “isolacionista” foi reforçado com as discussões acerca da pertinência em apoiar a Ucrânia na sua guerra contra a Rússia. Na União Europeia (UE), é muito difícil convencer quem quer que seja que, caso Donald Trump volte à Casa Branca, Vlodomyr Zelesnly veria o país que governa derrotado pelas persistências imperialistas de Vladimir Putin. A notícia de que Trump escolheu J.D.Vance como candidato a vice-presidente dos EUA foi estridente em muitos pontos do mundo.
Não nos devemos esquecer: de facto, J.D. Vance, numa entrevista a Steve Bannon, o antigo conselheiro de Trump, poucos dias antes da entrada do exército russo em território ucraniano, admitiu que se estava “nas tintas para o que acontece na Ucrânia”. E continuou com as seguintes palavras: “Nós não servimos no Corpo de Fuzileiros Navais para ir e combater Vladimir Putin porque ele não acreditava nos direitos dos transgénero, que é aquilo que o Departamento de Estado diz que é um problema maior com a Rússia”. Depois da invasão, Vance ainda não esclarecia todas as dúvidas: “Putin é um homem mau. (…). Mas o estabilishment de política externa que levou a Ucrânia directamente para o matadouro não merece outra coisa senão escárnio”. J.D.Vance começou por ser um membro fervorosamente anti-Trump do Partido Republicano. Mas, desde o ano passado que as suas visões se têm alinhado com os eleitores e militantes aparentemente mais fiéis a Trump. De vez em quando, ouvimos, em eventos e discussões online do movimento Make America Great Again (MAGA), comentários que poderiam muito bem ter sido proferidos por Tucker Carlson. Confesso que esses comentários me assustam e que não deveriam ser acolhidos pelo fundamental de uma administração Trump. Entre essas observações, está a de que a incursão decidida por Vladimir Putin em território ucraniano foi instigada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Uma posição que, apesar de discordar, eu admito ser intelectualmente defensável, e que eu já ouvi de outras personalidades que eu respeito, tais como Nigel Farage.
Mas, Ferguson obriga-nos a contrapor estas afirmações públicas dos dois anos passados de J.D.Vance com as entrevistas que deu mais recentemente. Em Junho deste ano, Vance defendeu, numa entrevista a Ross Douthat, que o envio de armas à Ucrânia é necessário para dissuadir a China de invadir ou bloquear Taiwan. Na mesma entrevista, Douthat perguntou-lhe se seria do interesse dos EUA “neste momento que os russos percorram pelo resto da Ucrânia”. Vance respondeu que não. Apresentou também um plano de três pontos para acabar com a guerra russo-ucraniana “com liderança americana”: reconhecer as fronteiras entre os dois países em guerra tais como elas estão hoje delineadas (ou como estavam à altura da entrevista), sem avanços ou recuos; garantir tanto a independência como a neutralidade de Kiev, o que corresponde a uma exigência de longa data de Moscovo; a existência de uma assistência de segurança por parte dos EUA a longo prazo.
A postura de Trump e de Vance, segundo Ferguson, traduz o regresso da prevalência do realismo ao Partido Republicano e uma resposta às ambições estratégicas do neoconservadorismo, que foram, ao longo do tempo, consideradas desmedidas e irracionalmente ambiciosas. Ferguson refere que o realismo reconhece que “os Estados Unidos enfrentam um novo eixo que une a Rússia com a China, o Irão e a Coreia do Norte”. Na minha opinião, a identificação desde desafio à recuperação da ordem liberal internacional (se bem que alguns defendem que ela ainda existe, se bem que ameaçada) pode unir realistas e os “neoconservadores”, assim como os restantes “falcões” da política externa norte-americana.
Trump e Vance não querem isolar os EUA do resto do mundo, abandonando os seus aliados e ignorar as ameaças e as agressões dos inimigos da paz mundial. Como afirma Ferguson, Trump e Vance aprontam-se para privilegiar a dissuasão e não a desescalada. Nem os neoconservadores e os falcões que outrora temiam que Trump fosse uma sombra de Pat Buchanan ou de Ron Paul negam que “há limites para os recursos militares e financeiros de uma América que agora gasta mais no serviço da dívida federal do que na segurança nacional”, para emprestar as palavras de Ferguson.
Da campanha de Donald J. Trump, sopram bons ventos. Concordo com Ferguson de que conceder à Rússia território que anexou ilegalmente é uma má ideia, pois pode convencer Vladimir Putin e o próximo presidente russo de que compensa expandir um Estado à custa da integridade das fronteiras de outro. De resto, assegurar que os EUA têm um papel importante na finalização da guerra, acabar com a guerra entre Israel e o Hamas (à qual se juntou pelo menos mais uma organização terrorista, o Hezbollah) e impedir a China de declarar guerra a Taiwan parecem objectivos inerentes a uma futura administração que quer os EUA atentos, fortes e com uma reputação minimamente aceitável no mundo.
Haja esperança e prestemos mais atenção ao legado de Trump e a grande parte das suas acções e declarações, assim como para as suas escolhas para conselheiro de segurança nacional, secretário de estado e secretário de defesa. Vejamos os documentos de Estratégia de Segurança Nacional de 2017, 2018, 2019 e 2020. Nada têm de isolacionista. Muito pelo contrário. Defender que Trump foi e é isolacionista parece-me cada vez mais cómico. E se há algo com que não se deve brincar é com alguém que tem a oportunidade de restaurar a influência dos EUA no cenário mundial. E Donald Trump parece estar à altura disso, ora governando, ora levantando o punho à beira da bandeira do seu país para informar os que querem rebaixar a América e a liberdade não terão assim tanta facilidade em ver os seus objectivos a serem concretizados.